Ao Norte, Entre Negar, Revelar e Reinterpretar a História

[Criticas ao Norte, Nortes pela Critica - Texto 1]
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O município de Presidente Figueiredo nasceu como parte de um processo de violência e saque, fundamentado em uma ideologia de progresso que se desvinculou por completo da ideia de homem; ou melhor, de uma fetichização do progresso cristalizado na crença de que este é simples e puramente o avanço técnico e o ‘desbravamento da natureza’. 

Por isso a população que ali se instalou vive um dilema entre a negação desta história e a sua exortação como fundamento de sua origem. 

O massacre dos indígenas Kiña (Waimirí-Atroarí), conduzido junto com a abertura da rodovia BR-174, e que tinha como justificativa a instalação de grandes projetos, em especial o de mineração em Pitinga e a Hidroelétrica de Balbina, criou um vácuo populacional. Um contingente expressivo de pessoas chegou então a esta região trazidos pelas forças desenvolvimentistas do Regime Militar. 

Os recursos financeiros provindos dos investimentos do Governo Federal e da arrecadação gerada por estes projetos atraíram também um elite política aproveitadora que ao mesmo tempo viabilizou – e viabiliza – projetos de exploração desordenados e se beneficia dos recursos públicos por meio de apropriação ilícita ou com uma licitude forjada. 

Os agentes deste processo, nem sempre conscientes das consequências de suas ações, são também parte do escamoteamento da história numa tentativa de camuflar os traços de violência e repressão que perduram. Concomitantemente constroem o discurso de que a população atual do município tem origem direta na instalação dos grandes projetos e que a violência é necessariamente parte da sua constituição, portanto parte natural da vida das pessoas (Naturalização do genocídio, do saque, dos processos de desumanização e degradação ambiental). Por meio da confusão criada com o escamoteamento da história, por um lado, e a naturalização da violência por outro, procura-se dissolver os movimentos de resistência e de criação de autonomias, enfraquecendo as lutas por maior participação política, o discurso de conservação ambiental e de melhoria dos espaços de vida. Tal qual falava Adorno. “Os que se opõe ao processo de repressão e destruição são acusados de ser anti-progresso” (Adorno no ensaio intitulado “A Indústria Cultural”). 

Mas nem tudo é ‘brutalidade avançada’. Naquele vácuo criado se instalaram também pessoas que procuravam um local para viver ou que se posicionavam contra este processo violento e repressivo. Muitos pequenos agricultores também chegaram de outras zonas, vezes expulsos de seus locais de origem em conflitos gerados por processos de apropriação do território pelo capital ou, ainda, pessoas oriundas de zonas urbanas pobres e deprimidas que procuravam um refúgio, um lugar para se estabelecerem. 

Em sua essência, portanto, são muito mais vítimas ou o oposto da perversidade dos grandes projetos que seus filhos. Essa compreensão não pode ser apreendida a partir da fuga da história, mas ao contrário, nasce de seu enfrentamento. 

Em favor da glorificação dos grandes projetos e da manutenção do status quo da gestão política e administrativa do município é sempre usado a ideia de ‘progresso’. Porém a ideologia de progresso por trás deste discurso se afasta completamente do verdadeiro significado de progresso. Tem este como um fim em si mesmo quando, como nos fala Adorno, em verdade “o progresso não é uma categoria conclusiva. Ele quer atrapalhar o triunfo do mal radical, não triunfar em si mesmo”. “Surgido socialmente, ele reclama uma confrontação crítica com a sociedade real”. 

E a realidade poderia ser muito melhor. Com espaço para o desenvolvimento da criatividade e da liberdade da juventude; com a consolidação de identidade e cultura própria; com uma democracia participativa; com a manutenção dos espaços naturais; com a exploração e manejo dos recursos naturais apenas quando realmente levam a uma melhoria nas condições de vida das pessoas e não comprometem o bem estar das futuras gerações; com a criação e melhoramento dos espaços de vida. 

Cabe então escancarar a história na esperança de que se perceba que “as instituições esclerosadas, as relações de produção não são pura e simplesmente um ser, mas sim, embora como onipotentes, algo feito por pessoas, revogável”. 

É preciso, seguindo ainda o pensamento de Adorno, perceber que o conceito de progresso é filosófico na medida em que ao mesmo tempo em que articula o movimento social, se contrapõe a ele quando se afasta da busca por mitigar o sofrimento que ainda persiste. Aí então os grandes projetos instalados em Presidente Figueiredo só serão visto como parte do nosso progresso na medida em que nos ajudarem a encontrar meios de evitá-los daqui para frente. Do contrário serão meras aberrações; monumentos a insanidade humana. E o massacre dos Kiña jamais deverá ser pensado como algo necessário; será sempre apenas um crime contra a humanidade.

[Este texto dialogo como o ensaio sobre “Progresso”, inserido na obra “Palavras e Sinais” de Theodor Adorno. ADORNO, T. W. Palavras e Sinais – Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel; supervisão de Álvaro Valls. Editora Vozes: Petrópolis, 1995] 


Maurício Adu Scwade,
Casa da Cultura do Urubuí, 05/2012

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