PANORAMA MISSIONÁRIO A ÉPOCA DO CONCÍLIO VAT. II. - Egydio Schwade

 O “Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos índios”, Decreto Nº 426 – 24-07-1845 foi um caso típico da aceitação por parte da Igreja das regras de jogo impostas pelo Estado aos povos indígenas e de rejeição do projeto autóctone para a organização da sociedade.

O título já introduz o conteúdo: “Catequese e Civilização”.

No conteúdo os missionários admitem “a conservação ou remoção, ou reunião de duas, ou mais nações, em uma só” – de acordo com o arbítrio e o interesse do projeto da sociedade invasora. (Art. 1º, 2º r 7º)

Aceitam contribuir para a violência e destruição cultural dos povos indígenas que não se comportam conforme as expectativas do Governo da sociedade nacional. (Art. 1º, S 3º)

Aceitam “pregar a Religião de Jesus Cristo e as vantagens da vida social” –  (Art. 1º, S 7º). O art. 1º & 7º insinua que Evangelizar=civilizar. “Os quais lhes vão pregar a Religião de Jesus Cristo e as vantagens da vida social”. O missionário vai aos índios com a garantia de proteção militar (Art. 1º S7º). Dispõe-se a aliciar alguns jovens índios para o alistamento militar para servirem na defesa da sociedade nacional (Art. 2º S 13º).

Quando se realizou o Concílio Vaticano II pouca coisa havia melhorado sobre este quadro desenhado pelos Estados, Brasileiro e Vaticano, sobre 1845 para o índio brasileiro. A missão indigenista da Igreja Católica no Brasil estava restrita à Amazônia Legal, porque só ali ainda havia povos onde pudesse aplicar o objetivo que a catequização se propunha: a integração à religião católica e à civilização invasora. E as missões junto aos indígenas eram poucas. Salesianos no Norte de Mato Grosso e no Alto Rio Negro. Jesuítas no Noroeste de Mato Grosso (Missão Anchieta). Franciscanos no rio Cururu/PA e junto aos Tiryó do Paru do Oeste/PA. Franciscanos da Ordem Terceira junto aos Pakaa-Novo no rio Guaporé/RO; capuchinhos no alto Solimões e Consolata junto aos Yanomami, no rio Catrimani/RR. Dominicanos junto aos Suruí e Assurini de Altamira/Pará. Diversas dessas missões eram atendidas por missionários solitários, abandonados pelos seus próprios co-irmãos, igual os índios pela Igreja.

Os jesuítas que tiveram as experiências mais ricas e interessantes durante os 500 anos de presença missionária indigenista, quando iniciaram a sua Missão Anchieta/MT, foram buscar inspiração em uma das missões mais doutrinadoras até então conhecidas: a dos salesianos junto aos Bororo e Xavante/MT.

A missão pré-conciliar seguia os princípios integracionistas da política oficial aperfeiçoando neste rumo os seus métodos ao longo dos cinco séculos de experiências. Nas sedes das Prelazias e das paróquias a força feminina da Instituição ocupava-se com as pesadas estruturas de escolas, hospitais, internatos, fazendo “bico pastoral” nos fins de semana.

Nas comunidades do interior da Amazônia as desobrigas (1) criaram uma Igreja desligada do cotidiano e da realidade do povo. A desobriga acontecia mais ou menos assim: o barco do padre, abastecido de alimentos, combustível e remédios, se deslocava da sede paroquial pelo rio, uma vez por ano para a celebração da missa e administração dos sacramentos no beiradão. Os patrões dos seringais, previamente avisados, acolhiam o padre. A maioria do povo chegava na véspera. Acomodava-se por aí “recebendo” agasalho e alimentação do patrão. Os regatões ou marreteiros, quando permitido pelo patrão, atracavam no porto atrás do padre. Ótima oportunidade para os seus negócios. O padre celebrava a missa, fazia os batizados e casamentos. Ouvia confissões e administrava o crisma. O patrão adiantava o pagamento pelos serviços religiosos que depois eram descontados da produção de borracha do seringueiro. Mulheres andavam dias pelos varadouros do “centro”(2) do seringal, com criancinhas ao colo; homens com a “dormida”(3) da família nas costas; pessoas grisalhas que nunca tinham visto cidade, nem a menor sede de município; índios acaboclados, todos vinham para se tornarem “cristãos” ou para receberem o sinal do “embranquecimento”, o atestado de serem “gente”, “civilizados”. O padre distribuía sacramentos, pílulas, santinhos e palavras moralistas, muitas vezes preconceituosas, repetindo a linguagem aprendida na mesa do patrão.

Os internatos permaneceram “reservados para os ricos e a `caridade` para os ‘barranqueiros’” – na expressão simples e sincera de uma religiosa de internato feminino de Porto Velho/RO-1978. Ali as classes sociais eram rigidamente respeitadas. Empregadas baratas, recolhidas nas comunidades indígenas ou ribeirinhas, discriminadas na alimentação, no alojamento e nas tarefas cotidianas, submetidas mediante uma doutrinação religiosa moralista e ‘civilizatória’, mantinham a infra-estrutura dos internatos. Comparado com o ambiente das comunidades da beira do rio, onde a partilha evangélica era o forte, aquelas jovens eram submetidas a uma catequese anti-evangélica. 

Nas sedes paroquiais e diocesanas, a par das construções, funcionavam pastorais setoriais importadas: ‘Congregação Mariana’, “Apostolado da Oração”, “Clubes de Mães”, “Movimento Familiar Cristão”, “Cursilhos de Cristandade”, “Movimento Focolare ou GEN” e outras.

COMO FUNCIONAVA A INSTITUIÇÃO?

O P. Antonio Iasi Junior como Secretário SNAM- Secretariado Nacional de Atividade Missionária da CNBB, em “Relatório da Visita às Prelazias da Amazônia” 1º-10-70 a 1º-02-71, caracteriza a atitude pastoral de Bispos e superiores religiosos do inicio dos anos 70, frente à questão indígena, da seguinte forma: “A pastoral com as populações indígenas além das dificuldades intrínsecas, menosprezadas por certos superiores, que destinam para ela missionários sem adequada preparação, sofre de outros males como, por exemplo, a opção pastoral.

A maioria das prelazias deixa os índios abandonados não necessariamente, por falta de pessoal, como me esclareceu um informante, mas por uma opção pastoral.

Um prelado dava graças a Deus porque os protestantes andavam metidos entre as populações indígenas de sua prelazia e assim não vinham mexer com os cristãos.

Atitude digna de nota é a daquele prelado com o qual mantivemos o seguinte diálogo:

- Sr. Bispo, como vão os índios de sua prelazia, quanto à assistência pastoral?

- Não há índios na minha prelazia, foi a resposta.

- Não há índios porque estes já se transformaram em “caboclos”, como são chamados em algumas regiões, perguntei?

- Não, não há índios mesmo.

- Mas, Sr. Bispo, nas nascentes dos rios tais e quais consta haver um grupo de índios e no momento estão sendo vitimados por uma epidemia.

- Mas são muito poucos, acrescentou o prelado.

- Até que não são tão poucos, consta haver algumas centenas.

- Bem, padre, nós temos pouca gente e não podemos atender os índios.

- Se o problema é esse posso indicar-lhe um sacerdote, que já trabalhou nove anos com os índios Kayapó e, no momento, está disponível.

Terminando o diálogo o prelado disse:
- Mas nesse caso eu teria que manter o padre.”

Há algumas situações que explicam e, até certo ponto, são as causas da alienação da instituição eclesiástica na atividade missionária do Brasil e que necessariamente levam a uma crise insuperável. Trata-se de atitudes ambíguas como: “a frente do Secretariado Nacional de Atividades Missionárias sempre esteve um prelado já por demais ocupado e preocupado com a sua própria Prelazia”. Depois que o Conselho indigenista Missionário e a Comissão Pastoral da Terra foram criados as Conferências Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB e latino-Americana-CELAM, continuaram nomeando bispos distantes da problemática missionária como responsáveis pelo setor missionário. Algumas vezes, tão distantes que o mesmo sequer chegou a ser conhecido pelos missionários e nem as Instituições se preocuparam em divulgar o seu nome.

Cada Prelazia é uma ilha – prossegue o P.Iasi em seu relatório – Quem olha para o mapa do Brasil, mal pode se dar conta de que as linhas, que assinalam a divisão eclesiástica da Amazônia, são muito mais do que simples linhas imaginárias ou jurídicas. São verdadeiras barreiras, muros que nos envergonham. Isolamento material. Cada Prelazia defende-se como pode, ou ainda julga poder, pois haveria outra maneira de se defender é não se defendendo, esquecendo-se que são obras desta ou daquela congregação. Esquecendo-se também que a prelazia não é distinta da comunidade, do povo que constitui a igreja naquela região.

Cada Prelazia pensa em termos de auto-suficiência cria obras paralelas e isoladas: estações de rádio, aviões, publicações, etc.

Isolamento cultural: O país de origem dos missionários está bem vivo em certas prelazias e por isso cada prelazia é um país diferente. Não se nota uma séria preocupação por se aculturar. Ao contrário: orações, leitura, recreações em comum e conversa em particular, tudo é feito na língua do país de origem: livros, revistas e jornais são estrangeiros.

Esta situação tem consequências sobre a pastoral e torna difícil a vivência com aqueles que não pertencem à mesma “ilha cultural”. Vocações nacionais, quando existem e chegam ao término da formação, são transplantadas para outras regiões. Isto acontece com os Capuchinhos do Maranhão e do Alto Solimões, com os Franciscanos do Pará e com os espiritanos do Alto Juruá/AC.

“Surge outro problema relacionado, em parte, com o anterior. A falta de missionários, ou melhor, o mau aproveitamento dos poucos missionários (há sacerdotes ocupados em tudo até em pastoral) leva, necessariamente, a pensar na colaboração dos leigos. Surge, então, a grande dificuldade: como aceitar a colaboração dos leigos não pertencentes à “ilha cultural” formada pela prelazia. A solução, ditada pelo etnocentrismo, foi procurar colaboradores no mesmo país de origem dos missionários. Estes colaboradores além de uma mentalidade alienada da nossa realidade, em não poucos casos, vinham como “messias” do terceiro mundo”.

Foi, a primeira vez que uma autoridade eclesiástica, no caso, o Secretário Geral do SNAM, chamou a atenção à necessidade do leigo organizado, com tempo integral a serviço da Igreja e como companheiro e não como “tapa-buraco” ou mão-de-obra barata da Instituição. “A solução é caminhar para a preparação de colaboradores nacionais e, quanto possível, da própria região – continua o Pe Iasi -. Há grande diferença de mentalidade entre os brasileiros do sul e mesmo do Centro e o elemento do Norte, sobretudo se este for o elemento indígena. Existe já uma organização, preocupada com o problema da formação de colaboradores leigos, a OPAN (Operação Anchieta).” 

O secretário do SNAM chamava atenção à necessidade de ”maior colaboração entre as prelazias”. Propunha a re-delimitação das circunscrições eclesiásticas. Os critérios dessa re-delimitação deveriam ser “áreas culturais”. Por exemplo, Nanbikuara, Xavante, Karajá... e não as margens dos rios. Em 1963 os Cinta Larga da margem esquerda do rio Juruena eram cruelmente assassinados pelos seringalistas da firma “Arruda e Junqueira”, com sede em Cuiabá. Em muitos ainda está viva a memória do “massacre do Paralelo 11”(). O povo Cinta Larga se localizava na Prelazia de Porto Velho, mas quem assistia a margem direita do Juruena por onde se tramava e corria livre o noticiário das chacinas daquele povo, era a prelazia de Diamantino/MT. Missionários dessa prelazia fizeram chegar aos ouvidos das autoridades eclesiásticas a necessidade de intervir a favor daquele povo, independentemente dos limites geográficos. Mas em resposta diziam que não tinham condições de atender ali: “Até a margem direita do rio Juruena nós atendemos, a margem esquerda pertence a Prelazia de Porto Velho”. A propósito o P.Adalberto Pereira sj. da Prelazia de Diamantino exclamava: “Maldito rio Juruena!”

Os índios Waimiri-Atroari, localizados em três circunscrições eclesiásticas: Manaus, Itacoatiara e Roraima sofreram situação semelhante. Foram massacrados no início da década de 1970-1974, reduzidos a menos de um terço de sua população sem uma denúncia oficial por parte de uma das três circunscrições eclesiásticas.
Resumindo: a História da Igreja na Amazônia nos apresenta duas atitudes missionárias bem distintas: 
  • A primeira atitude é resultante de quatro séculos de dominação político-religiosa dos povos indígenas. Sobressai a posição romano-doutrinária-impositiva cuja característica é o dualismo. A Igreja está aí para cuidar da alma e o Governo (SPI, FUNAI...) para cuidar do corpo. O objetivo de ambos é o mesmo: integrar o índio, ou seja, defende a política da abdicação da identidade autóctone para assumir a da sociedade nacional. Implícito está o etnocentrismo.
  • A mesma posição se caracteriza por um acentuado paternalismo e assistencialismo, que tiram a autonomia e evitam o crescimento interno das pessoas, das comunidades e dos povos. Propugna a política da tutela ou da incapacidade relativa da pessoa, da organização e da cultura popular e/ou indígenas.
  • O lirismo que usa as pessoas para fins lucrativos, comercializando a imagem do amazônida e idealizando o índio de forma a “angelizá-lo”.
  • A empresarial segundo a qual a pessoa vale pelo que produz. O objetivo da missão é evangelizar=civilizar. A missão é uma escola. Os modos de vida civilizada tem nesta escola um tempo e um lugar privilegiados, são condições para atingir os objetivos da missão. A sobrevivência e o futuro dos povos autóctones são vistos com pessimismo.
A missão tradicional apresenta normalmente todas essas características. Trata-se de uma missão que repousa sobre o fatalismo. É necrófila. Ela persegue o índio. Quando o alcança, o alicia, o reduz e vai morrendo com ele na medida em que alcança o seu objetivo que é a integração do índio como párea da sociedade nacional.

No dia a dia vemos povos Índios divididos dentro do seu território, por religião, por Circunscrição Eclesiástica, ou por Estados, ou por limites de países.

Integração é a palavra de ordem das Instituições. 

Diminuir a vida, a biodiversidade, o próprio espaço onde a vida acontece. O que é a implantação de uma cidade senão a morte lenta da vida? Cobrir a terra com asfalto e cimento. No estado perdemos o direito de anunciar a vida, de aumentá-la e de finalmente servir de adubo para novas gerações, como acontecia às pessoas das aldeias sem asfalto e sem leis escritas.

A segunda atitude é aquela que o Concílio Vaticano II propõe: A Igreja é a Luz dos Povos. Vai aos povos para ver a sua situação e se encarna em sua realidade e em seu modo de ser e de viver. E se solidaria. Identifica as “más novas” que o oprimem. Assim, por exemplo, para os povos indígenas é a perda do seus territórios, a perda da cultura e de sua autodeterminação. A “boa nova” que se contrapõe é ajudar a erguê-los, unindo-se a luta pelo direito à terra, à cultura e â sua autodeterminação e “colher as sementes do Verbo ocultas neles”, sementes que contém o segredo da transformação da sociedade rumo ao Bem Viver.

Casa da Cultura do Urubuí, 21 de junho de 22, 
Egydio Schwade

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