A JUSTIÇA NÃO FUNCIONA NAS ALTURAS DO PODER

“Por aquele tempo, Jesus pronunciou estas palavras: Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos.” (Mt.11.25)




Os poderes executivo, legislativo e Judiciário brasileiros foram como nunca desnudados, nestes últimos dois anos, expondo ao vivo a sua falta de interesse pelo povo brasileiro e sua evidência como poder promotor de privilégios para os ricos e “entendidos”.

A comparação entre o minguado e sempre odiado bolsa-família e a defesa intransigente do bolsa-auxílio-moradia, o bolsa juiz, em cujo encalço se justifica o aumento dos salários no Executivo e no Legislativo, desmascara o poder central brasileiro e mostra o abismo que há entre dois brasis: o dos ricos que detêm o poder e o dos pobres obrigados a cumprir as leis que vem de cima.

Ficou público e claro que a maioria dos juízes se enriquece dentro da uma lei formulada para garantir seus interesses, longe da lei inscrita em suas consciências. As populações que vivem na outra ponta já estão há muito tempo cientes e sentindo na pele esta realidade.

Até aqui ouvimos, frequentes vezes, afirmações como esta, que ouvi, há pouco tempo, da boca de um Ministro do Supremo: “Eu me oriento pela minha consciência e pelas leis do país” – e esta outra, de um expoente do judiciário amazonense: “Ninguém em sã consciência...” Como se a mais sadia das leis, aquela inscrita em todo o nascituro, fosse ainda prioritária na direção de suas ações pessoais e coletivas. Nada disso. É raro o juiz que realmente respeita e atende a voz de sua consciência. Se a usa é para enganar, para ludibriar a si e aos que de fato levam a justiça a sério. 

A posição do judiciário se tornou tão ridícula, tão cega que fizeram até uma greve no dia 15 de março, “em defesa dos privilégios do auxílio-moradia”, auxílio, apresentado como “combate à corrupção”, mas que nada mais é do que um meio de ludibriar o teto constitucional, ou seja: corrupção, hipocrisia e esperteza pura.

Durante mais de 50 anos de minha vida andei no Brasil dos esquecidos, esquecidos dos três poderes, na outra ponta da humanidade. Lá nunca vi um só juiz. Nos anos 60 andei no Noroeste de Mato Grosso com os povos Rikbaktsa, Irantxe, Apiaka, Kayabi, Pareci, Nanbikuara, Xavante, Bororo e no Sul com os Kaingang e Guarani de Nonoai, Votouro, Cacique Doble, Guarita, Xanxerê e Mangueirinha... Nos anos 70 estive com os Pakaa Novo do Rio Guaporé/RO, com os Xerente no Tocantins, com os Guajajara no Maranhão, com os Tiryió, os Kaxuiana e os Munduruku no Pará, com os Tikuna do Alto Solimões, com os povos do Alto Rio Negro, com os Deni, Madiha, Munduruku, Mura, Jamamadi, Jarawara e Apurinã do Amazonas... Com os Terena e Kaiowa-Guarani do Mato Grosso do Sul... Com Madihá, Kaxinauwá do Purus e do Envira no Acre.., com Makuxi, Wapitxana. Taurepang e Yanomami de Roraima, Guarani e Tupininkim do Espírito Santo. Com Xocó e Tuxá do São Francisco. Com os Xukuru do Sergipe e de Alagoas. Com os Fulniô/PE e com os Xukuru-Kariri da Serra do Ororubá no Pernambuco. E nos anos 80 com os Sateré-Maué e convivi com os Waimiri-Atroari ou Kiña. Povos, todos eles submetidos a graves injustiças. Injustiça que em muitos casos já se vem arrastando desde a vinda dos portugueses em 1500. E, embora tenha Fórum, com um judiciário muito bem instalado, nas cidades próximas, nunca 
encontrei um só juiz, nem que fosse apenas de passagem, em uma aldeia. 

Ainda recentemente, aos 79 anos de idade, acompanhei, como apoio moral, a um grupo de índios Yanomami, que munidos com seus arcos e flechas subiram os rios Mucajaí e Couto de Magalhães em Roraima, até próximo à Venezuela, onde solitários foram destruir dois garimpos ilegais ali instalados. Fiquei imaginando: como um Governo com todo o poder e armamento moderno, não consegue deter esses garimpos criminosos nas terras indígenas? Dias depois de forma semelhante, acompanhei índios Tenetehara, no Leste do Pará, onde vi os madeireiros, dia e noite,roubando a madeira das terras desses índios e de áreas de preservação permanente, sem uma só providência para deter uma destruição que afeta não apenas o futuro dos povos indígenas roubados, mas toda a nação brasileira.

Em meio a esta caminhada de vida topei com agricultores familiares e com seringueiros no Acre, no Mato Grosso e no Amazonas, sendo pressionados ou expulsos de seus lares e de sua terra por força de liminares concedidos a ricos empresários, madeireiros, comerciantes ou agro negociantes. Os povos indígenas, os seringueiros, os pequenos agricultores... só mediante teimosa luta, contra a injustiça, de juízes e empresas, conseguem se manter em suas terras. Anos entram, séculos passam e o sofrimento e a injustiça sempre pesa dura sobre essas populações abandonadas à sua sorte, enquanto os juízes nababescamente remunerados vivem à sua custa, sem um só retorno.

Em todas as cidades do interior e das metrópoles se acumulam processos e mais processos, sobre cujos autos se debruçam os juízes, dos fóruns do interior aos ministros do Supremo, ludibriando-se a si mesmos, julgando como se apenas nestes autos a verdade e a justiça reluzisse plenamente. Esta é nada mais do que o caminho de vida dos juízes. 

Aqui mesmo, no município de Presidente Figueiredo, acompanho desde 2010 a comunidade Terra Santa, km 152 da Br-174, onde um madeireiro conseguiu uma liminar de despejo da comunidade ostentando documentos nulos, (como comprovam professores de universidade e funcionários de órgãos públicos), documentos criados nos anos 70 pelo Regime Militar para favorecer comerciantes e industriais ricos de São Paulo. A Liminar foi assinada pelo juiz de plantão que sequer viu a comunidade. Apesar da resistência da mesma e da solidariedade recebida, as suas principais lideranças já foram despejadas. E o processo vem se arrastando por 8 anos na justiça em prejuízo da comunidade.

Casos iguais ou semelhantes se espraiam Brasil afora, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, 
porque a justiça não está nem aí, não existe para os brasileiros pobres e necessitados de
sua presença diária. O judiciário é hoje um órgão inútil para quem dele realmente necessita. Está aí preocupado com o que nada tem a ver com justiça ou até com a anti-justiça, a entrega das riquezas do país a lobbys de empresas internacionais. Está angustiado com a perda de seus privilégios, conquistados mediante seu corporativismo com outros poderes, dentro ou fora da lei, não importa. Já faz parte essencial do judiciário inútil que temos aí!

Casa da Cultura do Urubuí, Amazonas, 9 de abril de 2018, 

Egydio Schwade

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