Como iniciou a alfabetização na língua dos Kinã-Waimiri-atroari

Companheiras e companheiros,

Com esta publicação abaixo retomamos hoje as nossas publicações em nosso blog. Escolhemos vários assuntos e atividades nas quais estivemos e continuamos envolvidos. Iniciamos com o tema da alfabetização que realizamos na aldeia Yawara dos índios Waimiri-Atroari ou Kiña entre 1985 e 1986.


Doroti Alice e eu dedicamos a nossa existência à promoção da vida humana, em especial, às populações mais abandonadas e ultimamente também à promoção da fauna e da vida vegetal. Muitas pessoas amigas vem insistindo para que escrevamos essa nossa experiência. 

Uma boa parte de nossas vidas, Doroti e eu, não andamos juntos, embora mesmo antes do casamento pensássemos juntos. Diante disso, prefiro usar aqui de forma muito livre a primeira pessoa, mesmo que esta ora se refira a Egydio ora a Doroti. Conforme se referem carinhosamente os professores da Unicamp, Juracilda Veiga e Wilmar D`Angelis na dedicatória do livro “Desafios atuais da Educação Escolar Indígena”: “A Egydio Schwade que nos falou como um ancião indígena, a partir de sua experiência de 70 anos completados em 7 de julho de 2005 (durante o Encontro que gerou essa publicação), como partícipe e testemunha ocular da história do Brasil e da história indígena da segunda metade do séc. XX e do início do novo século. Por sua coragem em teimar, sempre, que a esperança vem da terra, vem do povo, vem daqueles dos quais ‘nada se espera’. E a Doroti, sua companheira, que com ele compõe um ser humano pleno.”

Em 1979 recebemos convite de Dom Jorge Marskell, Bispo de Itacoatiara para morar na Prelazia com a finalidade de apoiar o povo Waimiri-Atroari ou Kiña, como se autodenomina, razão porque os chamaremos frequentemente por esse nome. Desde 1975, pesava sobre mim (Egydio) uma proibição do governo militar de penetrar em qualquer área indígena do país. Por isso, iniciamos o nosso trabalho com cautela, incerindo-nos no movimento popular da Prelazia de Itacoatiara. Ao lado desse trabalho, organizamos um arquivo sobre a área Kiña, no que tivemos o auxílio de várias instituições, museus, arquivos e pessoas amigas. O arquivo desembocou em 1992 na criação da Casa da Cultura do Urubuí-CACUÍ e conta hoje com mais de três mil peças, entre artigos, mapas, relatórios, livros, etc. Simultanemente fizemos um levantamento da região para avaliar a situação dos Kiña e da população envolvente. De 1980 a 1985 procuramos transmitir dados do arquivo e de nossa experiência indigenista à população do Baixo Amazonas. Assim esta conheceu a história do povo Kiña e a de outros povos indígenas da região, seus ancestrais, em sua maioria extintos. Desta forma, colaboramos na mudança da mentalidade anti-indigena radicada na população regional. A simpatia pelos índios, em especial dos Waimiri-Atroari, pela sua histórica de resistência começou a se manifestar logo na Prelazia de Itacoatiara.

A partir de 1982, tomamos os primeiros contatos com as aldeias Kiña, através da BR-174. Contatos clandestinos, esporádicos e breves, mas suficientes para nos fazermos conhecidos e aceitos. Inicios de 1985, começo da Nova República, fomos convidados por um dirigente da FUNAI a participar de um Grupo de Estudos e Trabalho(GET) de 11 pessoas, criado pelo então Presidente da FUNAI, Gerson da Silva Alves, visando mudar a política indigenista na área Waimiri-Atroari até então conduzida de forma desastrosa pela FUNAI. Na última reunião do GT, realizada na aldeia Yawara, Km. 185 da BR-174/Sul de Roraima, recebemos o pedido explícito dos índios e o incentivo do GT, para iniciar as aulas. Aceitamos. E a autorização do Presidente da FUNAI ainda nos credenciou não só a lecionar, mas também a realizar pesquisa demográfica e etnológica.

Transferimo-nos para a aldeia Yawará com os nossos filhos, Marcos Ajuri 5 anos, Mauricio Adu 4 anos, e Mayá Regina 2 anos, no dia 4 de setembro de 1985, dispostos a efetivar a primeira experiência de alfabetização na língua Kiñá, ou kiñayara.  
O prédio da escola fora construído pelos índios com o apoio da Mineração Taboca S/A, Paranapanema e chamava-se “General Euclides Figueiredo”, uma homenagem da FUNAI ao irmão do ditador presidente da República, Gal. Joao Batista que assinou o decreto de desmembramento da parte Leste da reserva Waimiri-Atroari. Decreto que favoreceu a mineradora em prejuízo dos índios. Euclides Figueiredo era então o Comandante Militar da Amazônia. Da inauguração da Escola participaram, além do homenageado, Gal. Euclides Figueiredo, o presidente da FUNAI, Cel. Paulo Moreira Leal que preparou a minuta do decreto de redução da reserva. 

A escola funcionou, durante todo o período, de 4 de setembro de 1985 a 4 de dezembro de 1986, com plena satisfação dos índios e presença total da aldeia, incluindo os bebês. Para o início dos trabalhos tivemos a assessoria da linguista Ruth Monserat, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e em seguida de Márcio Silva da UNICAMP-Universidade de Campinas. Além disso, a experiência foi acompanhada, fiscalizada e recomendada pelo único lingüista que a FUNAI então possuía: Nelmo Roque Scher, como refere em conclusão no seu relatório: “A experiência que está sendo levada avante no PV Terraplanagem deverá ser estendida aos outros grupos Atroaris (Xeri, Baixo e Alto Alalaú) e Waimiris se possível sob orientação dos professores da escola Yauará, porque são pessoas comprometidas vitalmente com a causa desse povo. Cumpre-me enfatizar que não percebi qualquer forma de proselitismo religioso ou interferência cultural por parte dos professores. Estão, sim, empenhados em recuperar e valorizar os costumes, crenças e festas típicas desse povo através de sua ação pedagógica. O processo pedagógico demanda um tempo prolongado, assim sendo, é necessário que os atuais professores do PV Terraplanagem sejam apoiados e que se se necessitar de um convênio com o CIMI para garantir sua presença, que o mesmo seja assinado. Assim a FUNAI estará prestando um serviço a causa dos Waimiri-Atroari.” 

Em poucos meses os Kiña criaram a sua ortografia e começaram a elaborar textos em sua língua. Textos sobre sua geografia política, sobre a natureza, festas, vida diária e também sobre a sua história recente e violência sofrida com a passagem da BR-174 pelo seu território. Paranapanema, FUNAI, Exército e Eletronorte, invasores da sua terra, se sentiram ameaçados pela revelação dos índios. E a nossa presença se tornou incômoda. Por isso, em dezembro de 1986 o Superintendente da FUNAI, Sr. Sebastião Amâncio da Costa, por determinação do Presidente da Funai, Romero Jucá, nos retirou compulsoriamente da área e nos substituiu por um casal de norte-americanos da MEVA – Missão Evangélica da Amazônia, entidade, repetidas vezes, denunciada por funcionários da FUNAI pela sua interferência na cultura dos índios Wai-Wai/RR. Além disso, o casal foi introduzido na área através de autorização do Superintendente Regional, fora dos trâmites normais do órgão, ou seja, pela Direção do Museu do Índio/RJ. 

E a Mineradora Paranapanema não contente com a nossa expulsão, financiou uma campanha nacional contra nós e o CIMI.



Veiga, Juracilda, Rocha Ferreira, Maria Beatriz – Desafios atuais da Educação Escolar Indígena – Campinas, 2005.

Alves, Gerson da Silva (Presidente da FUNAI). Portaria No. 1901 de 12 de julho de 1985.

Alves, Gerson da Silva – Ofício Nr. 014/1985.
 
O Estado de São Paulo – 09 a 15 de agosto de 1987.


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