A Triste Atualidade do Genocídio Histórico dos Waimiri-Atroari

Leia abaixo o relato e a análise de Henry Albert Nakashima, historiador da Ocareté, sobre o genocídio histórico dos Waimiri-Atroari e a sua atualidade frente ao recrudescimento da agenda anti-indígena no país.
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A triste atualidade do genocídio histórico dos Waimiri-Atroari


De forma geral, vítimas da ditadura são aquelas pessoas que combateram em luta armada, ideológica, ou que, simplesmente, foram consideradas subversivas – por qualquer motivo, portanto, um risco a tal sistema político. No entanto, Egydio Schwade, um ex-missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há anos, vem lutando para divulgar o genocídio dos Waimiri-Atroari e mostrar que as vítimas dos anos de chumbo vão além do imaginado. Agora, sua luta ganha um reforço considerável: a Comissão Nacional da Verdade.


Durante um mês, tive o privilégio de conviver com ele e sua família e compreender melhor sua luta. Pude ouvir seus testemunhos, experiências e ter acesso aos seus arquivos sobre os Waimiri-Atroari. São milhares e milhares de documentos, como recortes de jornais, pareceres técnicos de antropólogos, ofícios da Funai, relatos, etc. corroborando sua tese. Minha estadia coincidiu com a finalização do relatório que o Comitê Estadual da Verdade-AM – do qual Egydio faz parte – entregou à Comissão Nacional da Verdade. Portanto, fui beneficiado por poder conversar diretamente com Egydio, um arquivo vivo sobre o assunto; por ter tido todo arquivo à minha disposição e por ter acompanhado a finalização de tão importante documento.



De fevereiro de 1985 a dezembro de 1986, Egydio e sua falecida esposa, Doroti, iniciaram na aldeia Yawará, ao sul de Roraima, um processo de alfabetização na língua materna da população local. Tendo o método Paulo Freire como base, partiram dos saberes e manifestações dos próprios indígenas. Desenvolveram uma comunicação inicial a partir de desenhos, que os indígenas faziam longe da vista dos educadores, e que se tornava ponto de partida para os diálogos do dia seguinte. Foi durante essa época que, com frequência, ambos se deparavam com uma grave pergunta:






Kamña é como os não-indígenas são chamados pelos waimiri-atroari, que por sua vez se autodenominam kiña; Apiemieke significa “por quê?”. É com essa pergunta que o relatório se inicia, um ecoar de tantas vozes em coro que chega agora ao Estado cobrando uma resposta, uma explicação para tão atrozes acontecimentos.

Além desse questionamento, intrigam os números demográficos. Em 1968, a serviço da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Padre Calleri, responsável por pacificar e atrair esses indígenas, estimou-os em 3 mil. Em 1983, o pesquisador Stephen Grant Baines, contou apenas 332 pessoas, sendo que não há notícia de alguma epidemia mais grave dentro desse intervalo de 15 anos para justificar tamanha discrepância.



O período coaduna com a ditadura militar e com a construção da rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista e literalmente atravessa o território dos Waimiri-Atroari. Nenhuma expedição de pacificação foi suficiente para impedir que eles resistissem e, consequentemente, perdessem suas vidas diante das diversas recomendações para matá-los e artifícios como fios elétricos à beira da estrada para impedir sua aproximação. O relatório prossegue fornecendo dados e apontando fontes sobre como a política do Estado, as ações dos responsáveis pela construção da BR, a própria FUNAI, os interesses econômicos e a grilagem de terras, levaram à morte esses indígenas, em nome do progresso e desenvolvimento. Por esses motivos, tiveram a área de seu território alterada mais de uma vez para corresponder aos interesses de empresas de mineração e para a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina.



Desenho kiña retratando o confronto entre os kamña e os kiña
Foto do acervo da Casa de Cultura do Urubuí.


A Comissão Nacional da Verdade surgiu como uma possibilidade de desanuviar muitos casos cometidos pelo regime militar ou com sua conivência, além de trazer à visibilidade personagens até então ignorados, como camponeses e indígenas. Assim, no dia 17 de outubro de 2012, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil-MA, as denúncias de Egydio, que durante tanto tempo ecoaram solitárias na história, foram formalmente entregues ao representante da Comissão, Gilney Viana, num evento com participação de políticos locais, Ministério Público Federal e representante dos Direitos Humanos da OAB-MA. Sem exceção, os ilustres presentes falaram com igual entusiasmo sobre a importância desse relatório e destacaram que não se pode mais aceitar que questões econômicas sejam prioridade em detrimento da vida humana.



Egydio Schwade entrega o relatório a Gilney Viana
Foto de Henry Albert Nakashima.


Lamentavelmente, porém, enquanto a Comissão Nacional da Verdade aceita investigar o genocídio dos Waimiri-Atroari, a sociedade brasileira testemunha um forte recrudescimento de ações contrárias aos povos indígenas. Exemplos não faltam: a grande repercussão do genocídio dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; os Yanomami, que correm risco de terem suas terras ainda mais invadidas por mineradores; os Xavante, que pedem a desintrusão da terra Marãiwatsédé; os Munduruku da aldeia Teles Pires que sofreram ataque da própria Polícia Federal, dentre outros muitos casos envolvendo indígenas e suas terras. Esses e outros casos não são isolados, mas parte de um movimento crescente de violência e discriminação institucional, orquestrado pelos setores da agroindústria, mineração e energia no país, com sustentação de grupos políticos conservadores e legitimados pela agenda desenvolvimentista do Governo Federal, além do apoio de muitos veículos da grande mídia. Não há grandes distinções entre a atual conjuntura e os processos que esses grupos sofrem, e o que os Waimiri-Atroari sofreram na ditadura. Portanto, a iniciativa da Comissão é muito bem-vinda, já que o passado deve ser desvelado, mas o presente não pode ser ignorado.

Para saber mais:
(1) Trecho do depoimento de Egydio Schwade na Comissão da Verdade, 09/05/2012
(2) Casa da Cultura do Urubuí
(3) Relatório Comitê Estadual da Verdade-AM


Originalmente publicado por Ocareté (13 de dezembro de 2012).

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