ASSEMBLEIAS INDÍGENAS: OS POVOS INDÍGENAS SE AFIRMAM

 Alguns precedentes

Há quem atribui a um grupo de antropólogos reunidos em Barbados a mudança na política indigenista na Igreja Católica, ocorrida a partir do final dos anos 60 no Brasil. Em verdade foi o apelo do Concílio Vaticano II por uma nova consciência frente aos povos que revolucionou o trabalho indigenista da Igreja e motivou as assembleias indígenas. A partir de 1962 chegavam aos educandários católicos os primeiros documentos do Concílio Vaticano II com orientações como esta:

“Como Cristo, por sua encarnação se ligou às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu, assim deve a Igreja inserir-se em todas essas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus (...) Reconheçam-se como membros do corpo social em que vivem e tomem parte na vida cultural e social através das várias relações e ocupações da vida humana. Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito descubram as sementes do Verbo ali ocultas.” (Ad Gentes 11)

De 1963-1965, fiz minha primeira experiência indigenista na Missão Anchieta-MIA, Prelazia de Diamantino/MT, voltando em seguida a S. Leopoldo para continuar o estudo de Teologia. Para efetivar o apelo do Vat.II, em 1966, os estudantes de Teologia da UNISINOS/RS que havíamos feito nossa experiência com os índios na Missão Anchieta, dirigimos uma carta a todos os nossos superiores e colegas da Prelazia de Diamantino/MT, propondo uma mudança radical de nosso trabalho ali. Como não obtivemos nem uma só resposta de apoio, Thomaz Lisboa e eu, nos convencemos que nas instituições não havia, nem clima, nem vontade política, nem visão, nem orientação evangélica, capaz de levar em frente tal programa. Por isso nos dirigimos semanalmente a jovens católic@s e evangélic@s de confissão luterana, no Vale do Rio do Sinos, abrindo-lhes os horizontes para um novo tipo de missão ecumênica na linha proposta pelo Vat. II.

Na Semana Santa de 1967, nós dois, tomamos a resolução de passá-la com os indígenas rio-grandenses, do que surgiram algumas ações: publicamos 9 artigos no Correio do Povo de Porto Alegre sobre a situação indígena no Estado que provocaram uma CPI-Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa e demos voz ao líder indígena, Juvêncio de Paulo, da área de Votouro, para que relatasse na TV, a situação em que viviam os índios sob a responsabilidade do Estado.

No início de 1969, Thomaz Lisboa voltou à Missão Anchieta. Nomeado diretor do Internato de Utiariti, sua primeira ação foi, - com o apoio do Pe. Albano Ternus, outro assinante da carta de 1966 - fechar o internato e pedir que os padres e irmãs que ali trabalhavam fossem às aldeias. De minha parte que ainda não havia concluído os meus estudos, continuei as palestras à juventude no Sul. E foi em meio a uma delas em Santa Catarina, fevereiro de 1969, que nasceu a OPAN-Operação Anchieta, cujos membros se dispunham a ir às comunidades indígenas com o objetivo de nelas se “encarnarem”. Iam como voluntári@s, sem salário e com uma visão supra limites políticos e eclesiásticos. Já no seu primeiro ano, a OPAN não se limitou a um estado e nem a uma só Diocese ou Prelazia e nem a um só povo indígena. A catequese foi banida. Evangelização é anúncio de Boa Nova. Esta se contrapõe às más novas. E as más novas para os índios era a perda da Terra, a perda da cultura e a perda da autodeterminação. Assim o anúncio da Boa Nova para os índios é terra, incentivo à sua cultura e condições para se auto determinarem.

Para abril de 1972 o coordenador do Secretariado Nacional de Atividade Missionária-SNAM-CNBB programou para Brasília, um encontro dos missionários indigenistas. A agenda desagradou a nós missionários da Missão Anchieta de Mato Grosso, porque não tomava em conta uma resolução de encontros anteriores: isto é, tratar a criação de um instrumento que elaborasse e coordenasse um programa de mudança da pastoral indigenista da Igreja. Por isso, D. Henrique, nosso bispo, pediu para que Thomaz e eu, o acompanhássemos para a reunião dos Bispos de Mato Grosso, reunidos em Campo Grande, no início daquele ano e lhes pedíssemos ajuda para mudar a agenda. Reelaboramos a agenda incluindo a aspiração dos missionários. E os bispos de Mato Grosso a assumiram e a encaminharam à CNBB, que a difundiu amplamente. Foi publicada pela revista SEDOC e até pelo Observatore Romano, Jornal do Vaticano.

Com todo este apoio, entramos na reunião de Brasília, em abril de 1972. Mas a mudança da agenda custou dois dias de intensa discussão, pois o coordenador do SNAM não aceitou a mudança de seu programa. Ao final, teve que ceder. Foi então que o encontro se encaminhou para a criação do CIMI-Conselho Indigenista Missionário, do qual Thomaz ficou um dos conselheiros. Em junho de 1973 foi criado o Secretariado Executivo do CIMI que assumi a pedido do Conselho do CIMI e do Secretário da CNBB. De junho a dezembro percorri o país, sozinho, período em que me convenci da necessidade do Secretariado ter um programa e uma equipe para levar avante o trabalho.

Estas ações, fechamento do Internato de Utiariti, a criação da OPAN e do CIMI, junto com a histórica experiência das Irmãzinhas de Jesus nos Tapirapé/MT, desde os anos 50, desencadearam na Igreja, Povo de Deus, uma nova política indigenista que pôs fim à histórica doutrinação e criou condições para uma presença solidária nas aldeias com uma visão supra limites geográficos e institucionais.

“A vivência da gente era espetacular – diz Ivar Busatto da OPAN - aprender a língua para poder-se comunicar sem segundas intenções, a não ser de entender o mundo indígena e aquela sociedade para poder com ela discutir possibilidades de trabalho (...), nós fizemos de graça isso, nosso envolvimento era um envolvimento gratuito, nessa gratuidade que a gente via nos índios de nos receber, abrir sua casa (...) essa gratuidade nós entendemos que devíamos devolvê-la também, por isso, éramos todos voluntários. Durante quinze ou vinte anos na OPAN, a gente não ganhava nem um salário mínimo (...) as despesas que a gente tinha eram pouquíssimas”. (Rebolar, Maria Dolores Campos, em O INDIGENISMO ALTERNATIVO DOS ANOS 1970-2000 – Processos formativos na Operação Amazônia Nativa – OPAN, Cuiabá/2016)

Foi a convivência diária nas aldeias que tornou realidade as assembleias indígenas.

O meu artigo se refere ao período das assembleias indígenas, distinguindo-o do período das organizações indígenas. Em todo este período até o final de 1980, tive envolvimento direto ou indireto, a nível nacional com este reerguimento indígena. Por isso me limito aqui apenas a estas.
Sobre a numeração das assembleias há controvérsia, por isso não levem muito a sério a minha. Algumas dessas assembleias desencadearam entre os índios verdadeiros processos de libertação e a criação de novos instrumentos de luta, provocando, onde se realizaram, outras mais limitadas aos povos diretamente interessados. Foi o caso da assembleia de Surumu/RR que suscitou mais de uma dezena, só no período em foco e desencadeou o processo de libertação da área Raposa Serra do Sol.
No mesmo período (1973-1980) estive também envolvido diretamente com todos os encontros de pastoral indigenista. Que também foram meta prioritária do 1º. programa do CIMI. E desde o início de minha carreira indigenista sempre atuei em íntima ligação com as bases indigenistas, tanto religiosas como leigas, que mais se empenharam na mudança da política indigenista da Igreja e em especial deram voz aos indígenas. Por isso desculpem se personalizo frequentemente neste relato.

Como surgiram as Primeiras 15 Assembleias Indígenas

Por volta de outubro de 1973, ou seja, poucos meses após ter tomado posse do secretariado, recebi um Relatório do Conselho Regional Indígena do Cauca/Colombia – CRIC. Tratava-se do relato de uma Assembleia Indígena do Rio Cauca. Esta foi a inspiração para as assembleias. Em dezembro, Thomaz e eu, fomos chamados para a última etapa da formação jesuítica na Gávea/RJ. Foi o momento de parar e organizar o programa do Secretariado. Mais preocupados com este do que com o evento jesuítico, ficamos muito tempo debruçados sobre o programa do Secretariado do CIMI. Encontros de pastoral indigenista para os missionários, por regiões e as Assembleias Indígenas ficaram as prioridades. Criar um espaço onde os indígenas pudessem avaliar a sua situação frente à sociedade nacional e articularem a sua própria estratégia de luta e posicionamentos, frente à política indigenista reinante no país. O programa foi aprovado pelo Conselho do CIMI em Janeiro de 1974.
Logo após a aprovação pelo Conselho organizei a equipe do Secretariado. A Operação Anchieta-OPAN, então uma organização de missionári@s leig@s, ofereceu logo duas pessoas: Ivar Busatto e Sílvia Bonotto, ambos com importante experiência de trabalho indigenista nas bases da Missão Anchieta/MT. Os padres redentoristas, por sua vez, autorizaram o seminarista Valber Dias Barbosa de integrar a equipe. Alguns meses depois se juntou ainda o jesuíta, Pe. Antonio Iasi. E a nossa sede em Brasília foi mantida, inicialmente, graças ao apoio do casal de jornalistas: Clara Favilla e José Romildo e após a 1ª Assembleia Nacional pelo casal Ivo e Carmen Lúcia Schröder da OPAN.

“Nós índios!”, “eu Nanbikuara”, “eu sou Bororo”...

Ivar Busatto se dirigiu logo ao Norte de Mato Grosso, onde iniciou a percorrida pelas aldeias, convidando as lideranças para a 1ª. assembleia indígena. Na Missão Anchieta, onde tanto os religiosos, como Thomaz Lisboa e Vicente Cañas e as diversas equipes da OPAN atuavam, o trabalho foi fácil. Na área Xavante e Bororo, Prelazia de Guiratinga, colaboraram logo os padres Rodolfo Lunkenbein e Ochoa e na Prelazia de São Felix do Araguaia, apoio unânime. Assim, já no dia 17 de abril de 1974 se reuniu a 1ª. assembleia de tuxauas em Diamantino/MT. Presentes lideranças de 9 povos indígenas. As reuniões foram ao ar livre, em contato direto com a natureza, sem mesas nem cadeiras, sentados sobre a grama e troncos. A primeira preocupação dos dirigentes do CIMI e da OPAN foi encontrar uma dinâmica na qual os índios se sentissem à vontade, não só para falarem livremente, mas também para encontrarem eles mesmos soluções para os seus problemas.

A dinâmica das assembleias consistia em três tempos: auto-apresentação dos participantes; primeiras informações sobre suas áreas, com relato dos principais problemas; e a descoberta de soluções. A 3ª.parte era feita por povo e sem a participação de nenhum “civilizado”, o que era tolerado nas duas primeiras partes. A não participação de pessoas não indígenas, no momento das decisões, dava aos índios a liberdade de falarem à vontade, sem influência estranha. Mas mesmo nas duas primeiras partes, com participação de “civilizados”, estes se mantinham calados.

Os povos indígenas do Norte mato grossense que até aqui buscavam SPI-FUNAI e os internatos das Missões, para aprender a ler e escrever, visando irem esconder a sua identidade em Cuiabá onde, longe de sua terra, viravam páreas da sociedade “civilizada”, rejeitando o serem índios (a maioria se auto-afirmava como “caboclo”, consequentemente os caboclos se afirmavam como “cariús”), começaram a se afirmar como índios (“Nós índios!”). Mas observando as suas diferenças também se reassumiram como povo distinto: “eu sou Rikbaktsa”, “eu Nhanbikuara”, “Bororo”, nós Kayabi, nós Apiaká, nós Rikbaktsa, nós Paresi, nós Tapirapé, nós Irantxe...

Comentando esta assembleia a revista SEDOC, novembro de 1974, refere: “O resultado foi surpreendente: os índios redescobriram que eles devem ser os sujeitos de seus destinos, não é a FUNAI, nem são as Missões, os que resolverão os problemas deles. Mas, “nós mesmos”, como afirmaram insistentemente.

Todos os chefes, cujo grupo étnico se encontra disperso, tomaram a resolução de se empenhar, custe o que custar, para atrair esses elementos às suas terras de origem.

Não menor decisão mostraram outros chefes para impedir que os brancos se casem com índios e venham viver nas aldeias, isso só traz males aos índios.” (SEDOC – novembro/1974 – No.520)

Entre a primeira e a segunda assembleia, ocorreu um espaço de mais de um ano, porque foram realizados 7 encontros de Pastoral Indigenista, que originaram os Regionais do CIMI: Mato Grosso, Maranhão-Goiás, Sul, Norte I, Norte II, Amazônia Ocidental e Mato Grosso do Sul. De todos eles também participaram lideranças indígenas da região, colaborando na reorganização da Política Indigenista da Igreja.

Cresce a solidariedade entre os povos indígenas

A 2ª. assembleia se reuniu na Missão Franciscana do Cururu/PA junto a aldeia Munduruku, em maio de 1975. Para sua realização, bem como para a realização das Assembleias Regionais de Pastoral Indigenista, Goiás-Maranhão, Norte I e Norte II, Silvia Bonotto e eu, iniciamos, logo após a reunião do Conselho do CIMI, em janeiro de 1974, uma longa viagem pelos interiores do Tocantins, Maranhão, Pará e Amazonas, motivando indígenas e missionári@s para colaborarem na realização desses eventos. Fiz ainda uma viagem aos Tiryió, do Alto Paru do Oeste/PA. Finalmente, D. Tomás Balduino e eu, visitamos o Almirante Camarão, chefe do Comando Militar da Amazônia-CMA, convencendo-o de disponibilizar aos índios o transporte da FAB. Camarão prontamente nos atendeu e foi graças à sua colaboração que a 2ª. Assembleia indígena se realizou. Os aviões do CMA trouxeram lideranças do Pará, Amapá, Tumucumaque, Tocantins e do Mato Grosso..
Durante a assembleia do Cururu, enquanto os indígenas tratavam a sós os seus problemas, nós Padres, irmãs, bispos e leig@s, não-índios presentes: Ranulfo, P.Iasi, P.Thomaz Lisboa, P.Nello Rufaldi, Frei Bento, Frei Alano, Ir. Maria José, D. Pedro Casaldáliga, D. Tomás Balduino e eu, discutimos a estratégia de criação da Comissão Pastoral da Terra-CPT. Ranulfo, um jovem que veio para integrar as fileiras do CIMI, foi convencido a integrar a primeira equipe da CPT. No mês seguinte, a ideia foi apresentada em reunião de bispos, onde foi aprovada, mas a sua criação e organização do primeiro programa, aconteceu a propósito da 1ª. Assembleia Nacional do CIMI em Goiânia, em junho de 1975.

A Assembleia do Cururu foi uma enorme e alegre confraternização de povos indígenas com representantes do Pará, Amapá, Mato Grosso e Tocantins muito participada pelas mulheres, homens, jovens e crianças, reunindo em torno de 800 indígenas. Nunca presenciei uma distribuição de comida tão eficiente, organizada, tranquila e ágil como esta que os Munduruku ofereceram, aos visitantes e ao seu povo.

O clima criado, desejado e acionado pelas assembleias indígenas, vem descrito por Lourenço Txibae Ewororo, na abertura da 3ª. assembleia realizada de 2 a 4 de setembro de 1975 na aldeia Bororo de Boqueirão/MT: “Estamos aqui para mais uma reunião. Como já sabemos, a 1ª foi feito em Diamantino, outra foi feito em Cururu, lá no Pará. Estamos vendo que estas reuniões está despertando bastante interesse por nossa parte índios. Estamos despertando também a FUNAI que é órgão principal encarregado de nossos problemas, de nossos interesses em geral. Estamos aparecendo. Por nossa parte cada um deve apresentar os problemas que tem sua área. O que estamos fazendo e devemos fazer? Para ver se nos sentimos mais unidos para reclamar e pedir à FUNAI para que no futuro temos uma condição de vida mais melhor para os nossos filhos. Seria bom cada um apresentar os problemas, o que devemos discutir para acharmos uma solução. Trabalhar tudo junto. Cada um vai ter liberdade de falar, livre e espontâneo de dizer. Pode se sentir em casa que ninguém vai reparar se alguém fala mal, fala bem, todos somos, sentimos irmãos aqui juntos.”

Neste encontro tive oportunidade de ver e sentir de perto a importância da realização das assembleias em clima de aldeia. A participação das mulheres Bororo, mesmo cuidando da cozinha, era intensa, deixando volta e meia seu trabalho, para irem cochichar aos ouvidos dos seus parceiros.

A característica da Assembleia de Boqueirão/MT foi a afirmação frente ao governo e, em especial, à FUNAI. E a solidariedade que almejavam entre eles. Também começaram a sentir a solidariedade da sociedade nacional e internacional. Veja a propósito trecho de discurso do Mário Juruna Xavante naquela assembleia: “Agora eu quero pedi vocês: Aonde índio tá sofrendo, vivendo a miséria, no lixo, então a gente devia fazer força, unir, com Bororo, Xavante, com Tapirapé, aonde índio tá sofrendo mais pior que nóis. Então a gente devia ajudar prá poder apertar mais Governo de Brasília. Então a gente qué conversar governo de Brasília, até ficá madurando o cabeça dele. A gente tem que gritá no cara dele. A gente não precisa ficá com medo dele. Governo foi estudado para poder tirar a coisa do outro. Ele nunca estuda para poder ajudá próximo. Então governo de Brasília todo canto a promessa dele tá cheio. A gente tá amontoando o promessa dele. Então vamo continuá. Vamo brigá. Governo não qué aceitar. Ele pode matar o índio. Agora, parece ele não tem coragem prá matá índio. Então a gente tem que ficá no coragem porque nóis confiamos 1º em Deus, o Deus é Pai Grande. Deus é todo poderoso, está acima de tudo. Mas o Presidente prá mim não é nada. Então a gente quer discutir o problema do índio, no cara dele. Porque a gente não fala nada ele não arresolve nada. Nunca pensa a probrema de índio. Ele só pensa a riqueza do branco. Prá ele índio não é nada. Prá ele índio não conhece a terra boa. Ele pega índio assim e joga na lixo, aonde terra não vale nada. Mas tem outra coisa: a gente que vê tem que andá com cuidado, porque Governo comprá índio assim. E mesmo próprio chefe dos Xavantes ele compra. Ele vai dá uma coisa prá índio, prá chefe: “Óia chefe toma seu presente e ocê vai”. Então índio vai ficá satisfeito. Índio volta alegre. Mas e famía dele? E a turma dele, o gente dele? Como que vai passar? Então a gente tem que vê a frente, prá traiz, o que tá faltando. Esse Fundação Nacional do Índio é pra defender o índio. Não é pra defender política militar. FUNAI é Fundação Nacional do Índio, não é fundação nacional do Militar. Militar entende a serviço dele. Ele não entende natureza de índio. Ele tá criando muito probrema é tudo Brasil inteiro. Ele vem, vem amontoando promessa: ‘espera, vamos estudar, espere este mês, no fim do mês vamos resolver’. E fim do mês e nada. Ele engana o índio. Então a gente tem que ficar com coragem. Depois se ele quiser matar índio, pode matar. Vira guerra. Acontece guerra aqui. Mas tem outros, acima do Brasil que tomam conta dos índios, que são a favor dos índios. Então nóis, o Bororo, o Xavante, o Tapirapé, Karajá, a gente tem que ficar com coragem. Vamos defender o direito nosso. Então a gente tem que lutá na reserva de são Marcos. Brigá até guentá. Aí continua brigá no prédio dele, lá na sala dele. E nóis tá sofreno por aqui, o mosquito morde no pessoa e pernilongo, espinho... ele senta no cima com cadeira bonito, troca gravata bonito, e gasta dinheiro da nação. Ele compra chácara, carro bonito, ele compra fazenda. Ele anda nesse avião outro país. Ele gasta dinheiro do índio. Então isso a gente tem que falar no cara dele. Então a gente tem que mexer no cabeça dele até ficá madurando cabeça dele.”Desta Assembleia, participou pela primeira vez um indígena de posto da FUNAI, trazido de Mato Grosso do Sul por Valber Dias, da equipe do secretariado. Valber, após a reunião do Conselho em janeiro de 1974, se dirigiu ao Mato Grosso do Sul, onde iniciou o enfrentamento de uma das mais difíceis situações que índios brasileiros viviam. Valber veio à assembleia de Boqueirão, acompanhado de um indígena Kaiowa-Guarani, Cláudio Nenito, que para participar do evento contrariou a política indigenista oficial, adversa ao CIMI. Nenito relatou o drama vivido pelos índios do Mato Grosso do Sul, drama que se estende até os nossos dias. Nenito era irmão de Marçal de Souza, o Tupã-Y, mártir indígena que em 1980, indicado pela 15ª. assembleia, em Manaus, relatou ao Papa a dramática situação vivida pelos índios, desde a chegada dos europeus. O depoimento de Claudio Nenito impressionou a ponto da Assembleia tomar a iniciativa de enviar, com Cláudio e Valber, representantes para verificarem in loco a situação. E outro grupo de Bororo e Xavante foi comigo ao Sul do Brasil. Os dois grupos foram animar estes povos a libertarem suas terras da grilagem e do saque, oficializados pelo poder público e para manifestar de perto a sua solidariedade.A visita às comunidades do Sul do Brasil teve consequências importantes para o movimento indígena brasileiro: A realização da 4ª. assembleia indígena de Frederico Westphalen/RS, um desdobramento da visita dos índios Xavantes e Bororo, onde se traçou o processo de libertação das áreas indígenas do Rio Grande do Sul e a libertação da área de Rio das Cobras/PR, foi outra consequência da visita.

Enfrentando as rodovias genocidas

A 5ª. assembleia foi realizada no Amapá, no rio Uaçá na Aldeia Kumarumã. Esta foi total iniciativa do Regional Norte II do CIMI, que compreende o Pará e o Amapá. Deu continuidade à assembleia do Cururu, da qual vários lideres amapaenses haviam participado.
Ao final do encontro os tuxauas enviaram uma carta de alerta e ao mesmo tempo de reivindicações para o Presidente da FUNAI, solicitando a demarcação de suas terras, ameaçadas com a construção da BR-156-Perimetral Norte. “Precisamos da terra para os nossos filhos e netos. A terra para nós é tudo: é a nossa riqueza e a nossa vida. Índio sem terra é nada.” – declaram no documento. Os próprios índios vindo a público contestar os grandes projetos do poder central, como ameaça à sua sobrevivência. Até aí sua luta se travava no confronto direto, onde o índio acabou sofrendo o genocídio: foi o que ocorreu com os Soró e Kaxarari na construção da BR-364; com os Kranhakarore, os Indios Gigantes, na BR-163; com os Parakanã, Arara e Tenharim na Transamazônica; com os Kiña ou Waimiri-Atroari na BR-174...
A 6ª. assembleia de líderes indígenas se reuniu na aldeia Nhanbikuara, Córrego Tira-catinga, Mun. Diamantino/MT, de 29 a 31 de dezembro de 1976. Esta assembleia atendeu a um desejo do tuxaua Marakanã Antonio, grande líder Nhanbikuara. Teve a ajuda dos voluntários da OPAN, que conviviam com este povo muito injustiçado, perseguido, roubado e humilhado ao longo de séculos de invasão “civilizada”. 
A ideia central que floresceu nesta assembleia foi: “Terra”. Como sintetizou Marakanã: “Assunto de terra é principal. Esse é que é o nosso coração. Temos que fiscalizar de ponta a ponta nossa área”. Os  Nhanbikuara foram expulsos de suas terras férteis e floresta do Vale do Guaporé, para o infértil Chapadão dos Pareci. Esta assembleia convocada e sustentada por um dos povos indígenas do ponto de vista financeiro e de terra, mais pobre do país, provou que os índios tendo sua terra de volta, têm condições de sobreviver sem paternalismo.
Para a assembleia os tuxauas haviam convidado jornalistas do O Estado de São Paulo e O Globo, que chegaram só no final do segundo dia do encontro. Os tuxauas se reuniram e deliberaram que os mesmos não deveriam mais participar. Os jornalistas respeitosamente acataram a decisão e se retiraram. Mesmo sendo tarde, foram passar a noite em Utiariti de onde, no dia seguinte retornaram para a sede dos seus jornais.

A perseguição dos latifundiários e a repressão do Estado

A 7ª- assembleia se reuniu em Surumu/RR. Foi incentivada durante uma percorrida do Pe. Luciano da Consolata e minha, durante andança de um mês pelas aldeias dos povos indígenas de Roraima. Prevista para os dias 7 a 10 de janeiro de 1977, a assembleia foi interrompida no 2º dia à tarde pelo chefe da 10ª Delegacia da FUNAI e Polícia Federal, acompanhados do sertanista Sebastião Amancio da Costa, aquele mesmo que dois anos antes, declarara em entrevista pública que usaria contra os Waimiri-Atroari, bombas e metralhadoras e deportaria os chefes renitentes, para outras áreas. Exigiam os repressores a retirada da reunião de D. Tomás Balduino e minha Egydio Schwade, respectivamente, Presidente e Secretário Executivo do CIMI. Como nem os tuxauas e nem nós cedemos, ordenaram a suspensão da assembleia. Entretanto, como a noite já se aproximava e não podendo dispersar os índios nesta situação, estes passaram a noite despertos. Foi o grande momento onde se organizou o prosseguimento da luta e novos eventos em suas aldeias. Movimento que desencadeou o processo de libertação de suas terras, como território indígena unido, o que se concretizou 32 anos após com a homologação da área Raposa Serra do Sol. Assim violentamente frustrados, em sua assembleia, esta se transformou em uma visível esperança, pois “estimulou os mais lúcidos dentre eles a se apoiarem mutuamente por meio do prosseguimento destes encontros, que constituem a única saída para que eles se tornem sujeitos, autores e destinatários da própria libertação” – escrevia na oportunidade, D.Tomás Balduino, Presidente do CIMI. A assembleia de Surumu acabou se desdobrando em mais de uma dezena, realizadas ao longo do processo dos 32 anos de luta para a conquista da área Raposa Serra do Sol. O Tuxaua Jaci, da aldeia Maturuca, nunca esqueceu aquele momento de repressão que todos, índios e CIMI, ali sofremos, pois 32 anos após, veio aqui convidar a família para participar da festa da vitória, festejada em 2009 em sua aldeia, na fronteira da Guiana e com a presença do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Convém observar que o território dos Makuxi, Wapitxana, Taurepang e Ingarikó, estava sendo invadido violentamente por fazendeiros, com participação oficial da FUNAI e da Polícia Federal, como constatei no levantamento que fiz em novembro de 1976.

A luta pela terra no Sul do Brasil

Entretanto, a 3ª. e a 4ª. assembleias ainda não haviam conseguido realizar os seus objetivos. A situação de opressão vivida nas aldeias do Sul e do Mato Grosso do Sul, continuava fermentando nas aldeias dos povos que haviam participado das mesmas. Por isso no dia 6-3-77, Daniel Matenho Kabixi e Txibae Ewororo, Bororo, enviaram uma carta-convite para a realização de uma nova assembleia no Sul, em Ijuí/RS para 16 a 18/04/1977, antes do Dia do Índio. Foi a 8ª. assembleia. O último dia foi nas Ruinas da Redução dos Guarani de São Miguel/RS, arrasada pelos exércitos de Espanha e Portugal, com o apoio do Vaticano, que suprimiu a Ordem dos jesuítas. Dali saiu um documento que denuncia, em especial, a situação aflitiva dos índios do sul do Brasil, premidos em suas reservas e espoliados de suas riquezas naturais, principalmente a madeira. Este documento constituiu-se em uma advertência aos órgãos públicos, em especial, à FUNAI de que a paciência se esgotara. A partir desta assembleia se organizou a estratégia de luta para a reconquista dos territórios Guarani e Kaingang, que iniciou no ano seguinte com a reconquista pelos Guarani da reserva de Rio das Cobras/PR. A propósito dela, no dia após o anúncio a grande imprensa anunciar a retomada, O Estadão informava em manchete: “300 Guerreiros Xavantes prontos para ajudar os Guaranis”. A luta prosseguiu com a retomada de Nonoai/RS pelos Kaingang, onde expulsaram todos os invasores. Nesta ação se distinguiu a estratégia e a tenacidade do líder Xangrê: “O índio tem capacidade de resolver os problemas deles dentro da área. - afirmara Xangrê poucos meses antes na 8ª.Assembléia, nas ruínas de são Miguel/RS – “Sem se preocupar temos que fazer um plano para todos. Tamos sofrendo um igual o outro. Trabalhar unido também pra segurar estas madeira que sai da área. Se não cuidar das madeiras, nós vamos ficar sem madeira como outros lugar que tão aí raspados. Não é certo a gente viver governado pelos outros, quando a gente tem capacidade de fazer.” 
 A retomada de Nonoai foi o gérmen do movimento que resultou na criação do MST-Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Expulsos de Nonoai, os agricultores ficaram acampados ao longo da estrada na Encruzilhada Natalino, Mun. de Ronda Alta. Com a convivência esclarecedora de um padre, firmaram pé até que o Governo do Estado lhes loteou a Fazenda Anoni e a Fazenda Sarandi, há anos desapropriadas para fins de Reforma Agrária, mas que nunca se realizara, o que levou muitos agricultores a invadirem as terras de seus irmãos, pobres e injustiçados: os índios. A partir daí o Movimento Indígena e o MST caminham juntos na luta pela terra.

A Luta pela demarcação da terra indígena em Mato Grosso

A 9ª.assembleia se realizou no Nordeste do Estado de Mato Grosso, em terras dos índios Tapirapé. Aconteceu de 7 a 8 de agosto de 1977. Nesta assembleia, além dos problemas dos índios Tapirapé, foi muito evidenciada a situação aflitiva dos índios Karajá e dos Xavantes de Marawatsede, estes expulsos de suas terras pela Fazenda Suiá-Missu. Também foi destaque especial, a participação de Xangrê, o estrategista da reconquista do território Kaingang de Nonoai/RS. Chegando à aldeia Tapirapé exclamou: “nunca viajei tanto em minha vida”!
A tônica desta assembleia foi: “nós mesmos temos que resolver os nossos problemas de terra. Não devemos mais esperar por FUNAI.”
“Não sei nem por que o branco veio prá cá... pra amansar? Índio não é bicho pra amansar. Amansar prá poder índio ficar assim manso e o branco aproveitar a terra dele?” – perguntava o tuxaua Tapirapé.
Durante as assembleias realizadas em Mato Grosso os Tapirapé, manifestaram desejo de conhecer e ter um casal de araras vermelhas, muito comum na região dos Rikbaktsa. Um dia os Rikbaktsa enviaram aviso ao CIMI de que o casal de araras já estava disponível. Mas quem iria fazer o transporte? São 1.500 km da aldeia Rikbaktsa do Juruena, aos Tapirapé no Araguaia. D.Tomás, com seu pequeno aviãozinho resolveu o problema: Um dia voamos juntos, ele pilotando um dia inteiro, até o Juruena de onde trouxemos as araras, sonho dos Tapirapé. Já anoitecendo chegamos de volta a cidade de Goiás.
De 15 a 18 de maio de 1978 se reuniu em São Marcos, aldeia dos índios Xavante, a 10ª. assembleia, a 5ª. só no Estado de Mato Grosso. Seu principal protagonista foi o tuxaua Xavante Aniceto. A propósito de mais uma assembleia em MG, convém observar que foi no período desta série de assembleias que se definiram e demarcaram, ali, mais áreas indígenas, tanto em número, quanto em tamanho. O que se deve, sem dúvida, à pressão desses eventos sobre o Governo Militar.  
A Assembleia de São Marcos publicou notas de solidariedade para os índios Kaingang de Rodeio Bonito, no Rio da Várzea/RS, e para os índios Guarani de MS em luta pela sua terra. E uma solidariedade especial, para Cláudio Nenito, irmão do Marçal de Souza, que devido a sua participação na 3ª. assembleia, sofria perseguição da FUNAI.

Os povos indígenas ressuscitam na Amazônia Ocidental

Até 1970 não existia nenhuma pastoral indigenista em toda a Amazônia Ocidental – Rondônia-Acre e Sul do Amazonas - . Foi a OPAN que em 1970 iniciou a presença da Igreja ali, ou seja, na Prelazia de Guajará-Mirim. Em seguida, com a criação do CIMI, ambos os organismos atuaram vários anos juntos, com o apoio das Prelazias e Dioceses, principalmente a partir de 1975. Entre 1976 e 1978, localizaram, ao longo dos rios Madeira, Purus e Envira, mais de 60 “restos” de comunidades de povos indígenas, esmagados e dispersos pelos seringalistas, madeireiros e novos donos, os “paulistas”. Estes levados à Amazônia pelo programa de Incentivos Fiscais da Ditadura Militar. Todos os bispos da região apoiavam o trabalho do CIMI. Menos o de Cruzeiro do Sul que chegou a negar a existência de índios em sua Prelazia para evitar a presença do CIMI. Teve até uma “elegante” maneira de advertir as pessoas da OPAN e do CIMI que lhe foram propor um trabalho junto aos índios: sua primeira atividade com os visitantes foi levá-los ao quartel para apresentá-los aos militares! Sabendo da existência de índios por diversas fontes, inclusive, folhetos de propaganda da própria Prelazia, de autoria do próprio bispo, tomamos uma iniciativa não muito “elegante”. Em 1976, acompanhado de dois membros da OPAN, Edna de Souza e Zé Caxias, subi o rio Purus e de lá, numa caminhada de 7 dias, por “estradas de seringa”, chegamos até o rio Envira, já na Prelazia do Cruzeiro do Sul. Alguns meses depois, com o Regional do CIMI Amazônia Ocidental já criado, a coordenadora Doroti e Giovanni Cantu, este da TVC-OPAN, se ofereceram ao vigário de Feijó, um padre conservador, para acompanhá-lo, como “catequistas” numa desobriga. Assim, fazendo o serviço de Secretaria do padre, conseguiram completar o levantamento dos índios no Envira. Uma situação muito aflitiva. Os Kampa(Ashanika) e Kulina (Madiha), por exemplo, eram escravos do Projeto de Desenvolvimento Novo Oeste, do Grupo Atlântica Boa Vista. Ironia: Um dos donos da fazenda era o ex-presidente da FUNAI, Gal. José Gerônimo Bandeira de Mello. 
Como início de um trabalho mais permanente na área, Giovanni se ofereceu, como “catequista” da paróquia, mas foi trabalhar de peão durante um ano na Fazenda Atlântica Boa Vista. Nesta condição conseguiu convencer os índios a voltarem para as suas aldeias, onde em seguida, a OPAN iniciou uma presença permanente, conduzido pelo indigenista Kanaú. 
A correspondência entre Giovanni, o padre e Doroti, revelam bem a situação em que se moviam, na Amazônia Ocidental, os agentes de mudança da pastoral indigenista, nestes inícios complicados. Veja carta do ‘peão’ Giovanni:

“04-07-77 – Fazenda

Minha queridíssima Doroti,
Faz dias que te mandei uma carta, através Caxias do Sul. Penso que ali você esteja passando bem as “suas” férias e que possa gozar de todo o “confort” possível para se recuperar completamente das grandes “fadigas” do trabalho do norte e assim poder voltar com muita carga do E.S. para o nosso bem e de toda a Santa Igreja. Outro dia recebi uma cartinha do Pe. Alberto (vigário de Feijó) cujas palavras são: “Estimado Giovanni, recebi as suas 2 cartas e agradeço. Aqui vai tudo bem. O Sr. Bispo esteve aqui, saiu hoje para Cruzeiro. A propósito, acho que seria bom o Sr. entrar em contato com ele, explicando-lhe o por quê de sua estadia nesta Prelazia. Endereço: D. Henrique Rueth – Prelazia do Alto Juruá – Cruzeiro do Sul. Recebi nomeação para Juiz de Paz, devendo ser ainda empossado pelo Juiz. Então poderei fazer tb. Casamentos pelo civil – melhor os dois. Também deixei o hospital, sendo que o governo paga meus serviços como enfermeiro, visto que atendo o povo por toda a parte. Uma pergunta: será que o Sr. poderia conseguir-me semente de CAPIM BRAQUIARA? Há tanto capim braquiara semeado na Fazenda! Queria até um saco, se fosse possível. E se não for, pelo menos uns quilos, para semear em nossa chácara, para as vacas. Não sei quando eu vou na Fazenda. Seu Enzo havia prometido, mas nada. Creio que o Sr. está fazendo catequese e culto dominical. Vai bem? É bom preparar as crianças de 10 anos e mais para a 1ª Comunhão e uma turma de 14 anos e mais para a Crisma. Sem mais, saudações! Pe. Alberto Urban”.
Veja um pouco quanta coisa para comentar. Quanto ao contato com o Bispo estou pensando neste dias em que bases irei-lhe escrever. Penso, porém, dado que não estou acostumado, de dizer-lhe alguma coisa, como por exemplo, trabalho, conhecimento do povo, harmonização entre os cariús e os caboclos etc., sem necessariamente dizer o motivo, ainda que não seja toda a Verdade. Vamos ver o que vai sair. A respeito da preparação da 1ª Comunhão e Crisma como fala o Pe. Alberto, você conhece um pouco o meu ponto de vista sobre os sacramentos, penso que estes dias devo escrever para ele, dizendo-lhe o meu pensamento a respeito. Quanto mais convivo com o povo, mais percebo que o Cristo se apresenta na História de uma maneira formidável. Conviveu como qualquer. Pregou a boa nova como UM e morreu como um de “nós”, um líder, uma força que atrai. Uma ressurreição que muda de VIDA.
Tudo isso, pra nos dizer que estrutura nenhuma salva, pode ao máximo abrir (ou fechar) as ideias, pode nos ajudar na nossa escolha, mas o importante é a fé.
É a nossa maneira de viver junto ao povo, a nossa maneira de se encarnar no povo. Enquanto nós vemos o povo, uma “coisa” longe ou uma coisa diferente de nós, estamos muito longe da vida do Cristo.
O Cristo viveu sem diferença nenhuma com o seu povo, quando começou a falar (palavra = vida pública) disseram: “mas este homem não é o filho de Maria? Não é ele o carpinteiro? Não é ele um de nós?”
Sim, querida Doroti, sempre mais, estou percebendo que a nossa vida vale alguma coisa como presença se vivermos junto ao povo, “como o povo”.
E como São Paulo diz: “Me fiz judeu com os judeus, romano com os romanos, pobre com os pobres, trabalhei para me sustentar, prá não ser de “peso” de ninguém.
Termino aqui minha carta, espero receber suas notícias, se não logo já – já. Saudações e abraços a todos aí no Sul, Caxias e P. Alegre, lembrança especial para o nosso Antônio.
Mais nada, aquele abraço em Xto...... Ciao Tehan Giovanni"

Desde inícios de 1978, os membros da Operação Anchieta já atuavam com pelo menos quatro equipes no Alto, Médio, Baixo rio Purus e no Envira e sonhavam em reunir uma assembleia indígena, apesar das dificuldades que a situação desses povos oferecia. Diante das dificuldades enormes para juntar os índios em um só local, optaram por duas assembleias. A primeira, inicialmente prevista para Tapauá, acabou se realizando em Lábrea/Purus, de 19 a 20 de junho de 1978. Esta assembleia, a 11ª., como a que se realizou um ano depois em Pauini, além dos membros da OPAN, tiveram a assessoria do Pe. Antônio Iasi, sj. Os “restos” destes povos viviam situações muito difíceis, de dependência de patrões. Veja alguns exemplos:

“Manoel Palmari. Eu vim. Conto logo a verdade. Eu vim prá esta reunião. O patrão que eu trabalha, eu trabalho muito. Nada eu tenho. Patrão é o Ademar Machado. Moro no Caimiã. Trabalho há 20 anos que nós trabalha. Nada nós não temos. Coisíssima nenhuma. É castanha, é sorva. É nosso trabalho. Nada nós temos. Intoncis vim pra dizer meu nome. Eu vim porque eles quer tomar nosso lugar. Lugar é nosso. Eles querem tomar agora. Eu vim lá saber se volto de novo pra nosso lugar, se intrega nosso lugar ou se tentar saber. Manoel da Boca do Tapauá.”
“Meu nome Paulino Lopes da Silva, só esse mesmo da minha família. Já saíram tudo. Tudinho da nossa tribo mesmo. saíram dali do lago Marrão. Ah! Tudo espalhado por aí. Tem bem uns quatro andando por aí, tudo rapaz assim solteiro. Tudo ralado aí com os patrões tirando madeira. Meu menino no ano passado o patrão enganou na madeira, não deu talão, não deu nada. Quando chegou só com a calcinha e uma camisinha. Trabalhou o inverno todinho, mas não ganhou coisa nenhuma. Patrão enganou ele. Nome do patrão Dida, lá da Conceição. Prá tirar madeira é longe, é em Mauritânia. Lá próximo. Desde que eu trabalho com o Osmar nunca recebi talão na minha vida. Nunca recebi. Só coisa de objetos. Eu pregunto: Tenho saldo? Tem não! Rapaz eu quero o meu talão. Patrão: Amanhã, depois te dou o talão – até hoje! Eu espera receber este talão até hoje. É todo tempo enganando nós. Passei o inverno todinho tirando madeira, dando preço quase me matou. Oh! Rapaz a madeira dá muito boa! Tá dando muito dinheiro – O besta vai e tira madeira – é às pampa. Eles que ganhou e nós – bem! Nós ganha coisa nenhuma. Só o trabalho. A gente nada tem. Querosene é daquele preço né! – 12,00 o litro, sabão 25,00 – carranã (cachaça) é 20,00.”
“Constantino Apurinã. Bem, eu venho de Guajarrã. Trabalhei no Guajarrã. Francisco Borges. Antonces ele morreu e nós se bandalhemo. Se bandalhemo, intonces se nós vivemo trabalhando. Com seringalista sabe, fazendo muito produto e nada nós temos. Que nós não tem nada disso aí. Só vive embolado assim de remanço. Intonci neste causo que nós não pode morar diz que não tem terra, é jogado a toa como cachorro. Ninguém pode fazer uma barraca. Diz que é do fulano e fica aí a toa ninguém pode fazer uma casa. Intoncis nois, nois somo pescador, o dono do lago não quer que nós pesca no inverno, isto proibido, mas não é. Entoncis toda vez que nois pesca, vamo pru xadrez sem merecer. Faz-se intimado por nós, somos pescador, quando as vezes chega, vai buscar nois no lago, nois tamo no lago, chega nois chega nois fomo na delegacia. No verão nois não pesca só no inverno. Só isto.”

A situação desses povos esmagados exigiu no início a assessoria dos membros da OPAN e do Pe. Iasi para animá-los e lhes abrir novos horizontes. Hoje já reconquistaram boa parte de seus territórios tradicionais no Purus, Madeira e Envira.
É interessante observar que o registro da assembleia de Lábrea se encontra manuscrita no verso do Luta Indígena, boletim do CIMI/Sul. Monstra as condições precárias com que se agia então. Mas a falta de equipamento do CIMI-Sul, para aproveitar o verso dos seus boletins, acabou favorecendo a OPAN/CIMI no Purus. Doroti, a coordenadora do CIMI-Amazônia Ocidental, aproveitou o espaço deixado pelo CIMI-Sul, para secretariar a assembleia dos índios. Mostra ainda como a luta indígena nacional, apesar dos poucos recursos, era acompanhada em todo o país.
A 12ª. assembleia aconteceu em Pauini no Médio Purus, em condições semelhantes a Lábrea, de 30 de setembro a 2 de outubro de 1979: ambiente muito difícil. Para sua realização “foi fundamental, - escreve Lino João Neves - a presença (em todos os momentos, nas visitas e durante a Assembleia) de Silvio José Gasperini Bonotto, o Zé Bonotto”, membro da OPAN que atuou um bom tempo no Projeto Seruini, onde adquiriu uma doença fatal. Além dele atuaram para sua realização os membros da OPAN, Lino João Neves e Darci Secchi e o Pe. Iasi do CIMI.

Povos ressurgem no Nordeste

A 13ª. assembleia se reuniu na Ilha de São Pedro, no Sergipe de 12 a 14 de outubro de 1979. A característica dessa assembleia foi a presença de 15 povos, todos eles sob extrema pressão, alguns morando sob lonas, porque a terra lhes foi roubada. A assembleia publicou um documento que é um clamor desesperado por justiça, pela devolução de pelo menos uma nesga de terra e “casas para nossas famílias. Já faz mais de 30 dias que estamos debaixo dos pés de paus com crianças ainda lactentes e estamos vendo a hora de sermos atacados pelas trovoadas”. Diversos desses povos estavam em processo de ressurgimento, animados pela movimentação e solidariedade nacional. Outros como os Tuxá, de Rodelas, estavam em processo de perda do seu último pedaço de chão para grandes projetos hidrelétricos do Governo.

Encontro com o Papa 

 Para a 14ª. assembleia foi feita uma convocatória nacional de indígenas em preparação do encontro com o Papa João Paulo II. A assembleia teve três etapas: uma assembleia prévia em Brasília; a assembleia em Manaus; e, finalmente, o encontro com o Papa. Na assembleia de Manaus foi escolhido Marçal de Souza, o Tupã-Y, como orador oficial dos índios para o encontro com o Papa.
Acompanhei a assembleia de Manaus, onde me encarregaram de garantir a presença dos tuxauas participantes, junto ao Papa. Isto não foi muito fácil. Além do espaço muito pequeno, pouco mais do que a escada do palácio do Arcebispo, a entrada da rua já estava toda tomada e quem comandava o portão de acesso ao palácio do arcebispo onde o Papa esperava os índios, foi um cardeal americano, conhecido pela sua truculência. Quando consegui que o último tuxaua, transpusesse o portão episcopal, recebi um empurrão, registrado, à época, pela presença da Imprensa.
Eis o discurso de Marçal de Souza, o Tupã-Y, tuxaua Kaiowa-Guarani, morto poucos meses após o encontro com o Papa:

“Santidade João Paulo II, 

Eu sou representante da grande tribo Guarani. Quando nos primórdios, com o descobrimento dessa grande pátria, nós éramos uma grande nação e hoje eu não poderia como representante dessa nação que hoje vive à margem da chamada civilização, Santo Padre, não poderíamos nos calar pela sua visita neste país.
Como representante, porque não dizer, de todas as nações indígenas que habitam este país que está ficando tao pequeno para nós e tão grande para aqueles que nos tomaram esta Pátria.
Somos uma nação subjugada pelos potentes, uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar o caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não tem dado condições para a nossa sobrevivência, Santo Padre.
Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são diminuídos, não temos mais condições de sobrevivência. Pesamos a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte dos nossos lideres assassinados friamente por aqueles que tomam o nosso chão, aquilo que para nós representa a nossa própria vida e a nossa sobrevivência nesse grande Brasil chamado um país cristão.
Represento aqui o Centro-Sul desse grande país, a nação Kaingang que perdeu recentemente seu líder, (29-01-80) foi assassinado também o Pankararu, (26-12-79) no Nordeste. Perdeu o seu líder porque quis lutar pela nossa nação. Queriam salvar a nossa nação, trazer a redenção, trazer a redenção para o nosso povo, mas não encontrou redenção, mas encontrou a morte. Ainda resta uma esperança para nós com a sua visita. Santo Padre, o senhor poderá levar fora dos nossos territórios, pois nós não temos condições, pois somos subjugados pelos potentes. A nossa voz é embargada por aqueles que se dizem dirigentes desse grande país, Santo Padre, nós depositamos uma grande esperança na sua visita em nosso país. Leve o nosso clamor, a nossa voz por outros territórios que não são nossos, mas que o povo, uma população mais humana, lute por nós, porque o nosso povo, a nossa nação indígena está desaparecendo do Brasil. Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Esta é a verdadeira história. Nunca foi contada a verdadeira história do nosso povo, Santo Padre. Eu deixo aqui o meu apelo, apelo de 200 mil indígenas que habitam, lutam pela sua sobrevivência nesse país tão grande e tão pequeno para nós, Santo Padre. Depositamos no senhor, como representante da Igreja Católica, chefe da humanidade, que leve a nossa voz para que ainda a nossa esperança encontre repercussões no mundo internacional. Esta é a mensagem que deixo para o senhor.” (Discurso proferido na sacada do Palácio Episcopal de Manaus em 10 de julho de 1980).

O guaraná circula pela assembleia.

A 15ª. assembleia se realizou poucos meses após o encontro com o Papa. Se reuniu na aldeia Simão, reserva do Andirá, dos índios Saterê-Maué. Ocorreu de 10 a 12 de dezembro de 1980. Teve a presença quase unânime desse povo. Em sua preparação o povo Sateré-Maué construiu um enorme galpão, onde se realizaram os encontros e que serviu de dormida para muitos. Lembrança marcante que ficou desta assembleia foi o reconfortante guaraná que circulava o tempo todo.

Algumas conclusões desta assembleia:
  1. exigir do governo todas as informações de planos de desenvolvimento na Região Amazônica em terras indígenas.
  2. denunciar as agências que financiam projetos, quando estiver em área indígena. (Estas duas conclusões surgiram sobretudo ante a preocupação dos Saterê-Maué, diante das prospecções petrolíferas iniciadas na época em suas terras pela empresa francesa – Eck-taine)
  3. encaminhar ao governo federal proposta sobre os interesses indígenas, a partir da situação atual.
  4. exigir das autoridades do Estado o reconhecimento das áreas indígenas.
  5. demarcação e garantia de todas as terras indígenas.

Concluindo

Integração foi e é a palavra de ordem das instituições estatais. Toda a integração de um povo indígena autônomo passa pela sua desintegração. E a desintegração vem essencialmente acompanhada pela perda da terra, perda da cultura e perda da autodeterminação. Era este o trabalho que exerciam secularmente as missões e o Governo junto aos indígenas. Trabalho que também pratiquei no internato de Utiariti, na Missão Anchieta, em 1963, onde iniciei o meu trabalho indigenista. Tanto assim que, então, o Delegado do SPI do Mato Grosso, me encaminhou um grupo de rapazes e moças, Xavantes e Bororo que passaram aquele ano estudando comigo. Certamente foi a repercussão “positiva” e “eficiente” do nosso trabalho, como ação integracionista, que o levou até nós.
A mudança de rumos do nosso trabalho se iniciou com o fechamento de Utiariti, a criação da OPAN em 1969 e a criação do CIMI em 1972. Mas logo tivemos o apoio de jornalistas audazes que levaram ao público brasileiro a calamitosa situação dos povos indígenas e a realização das assembleias indígenas. E na sociedade, em especial, nas universidades públicas, criaram-se, em seguida, mais de uma dezena de entidades de apoio ao índio. Foi este mutirão de forças que mudou o quadro desesperador das etnias brasileiras condenadas ao extermínio. Animou a consciência desses povos, reafirmando a sua identidade e, como consequência, fez crescer a solidariedade entre os povos indígenas e entre os segmentos oprimidos da sociedade nacional. O resultado foi a transformação da realidade indígena nacional. Mudança que tornou a década de 70, em plena ditadura militar, o período mais esperançoso da História Indígena dos últimos 500 anos.
O sucesso das Assembleias indígenas e suas consequências positivas nas comunidades contagiaram as forças vivas da nação brasileira. Por influência das assembleias e do apoio externo que tiveram, surgiu a Organização Indígena: União das Nações Indígenas – UNI ou UNIND, CAPOIB, COIAB–Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira entre muitas outras.
 
O resultado para os povos indígenas brasileiros está visível na tabela abaixo:



O sangue derramado ao longo de quase cinco séculos começa a ser valorizado, abrindo novos horizontes e somando forças numa história de esperança. Os mártires índios, sacrificados em defesa da sua terra e de sua autodeterminação, continuam caindo, como nos séculos anteriores, mas a valorização desse sacrifício e a sua celebração ficou diferente. Todo o sangue derramado pela causa dessas nações começa a ter repercussão internacional e efeitos na reconquista da terra, na retomada da sua cultura, desembocando na autodeterminação que, temos certeza, um dia trarão seus resultados positivos para um BEM-VIVER de toda a nação brasileira.

Casa da Cultura do Urubuí, 03 de dezembro de 2017 – em memória de Doroti Alice Müller Schwade, 1ª. Coordenadora do CIMI-Amazônia Ocidental.
Egydio Schwade

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