Colégio Cristo Rei – São Leopoldo – 1967

Revmo. Pe. Geral Pe. Pedro Arrupe
Pax Christi!

Somos escolásticos, estudantes de Teologia. Trabalhamos – durante o nosso Magistério – três anos na Missão Anchieta de Diamantino, Mato Grosso. E é do trabalho daquela Missão e em particular do trabalho entre os indígenas e da situação dos indígenas do Brasil que queremos informar à V. Paternidade. Queremos fazê-lo com toda a sinceridade, procurando referir pontos, que nossos estimados superiores, pelo acúmulo de trabalhos talvez, às vezes, se esqueçam de referir à V. Paternidade, mas que afetam – no nosso entender – muito a orientação da Companhia.
Parece-nos, P. Geral, que há um desajuste radical nos critérios segundo os quais se destinam os nossos aos trabalhos de evangelização em povos estranhos. Queremos falar da experiência que vivemos em nossa querida Missão Anchieta.
A generosidade, que julgamos ser a estrada geral do Espírito Santo para as almas, e delas para a cristianização do mundo, ficou esquecida e desrespeitada em algumas Províncias, ou tornou-se joguete de interesses pessoais dum homem, duma casa, duma Província.
Referimo-nos, sobretudo às destinações dos irmãos à Missão Anchieta, que se fazem tão necessárias naquela difícil Missão. Vamos descer à particularidades bem recentes e só da Província sob cuja responsabilidade está a Missão.
Havia aqui um Irmão velhinho muito esquisito, num posto onde esta originalidade caía muito em vista. Todo o mundo opinava que o Irmão não possuía equilíbrio suficiente... Mas transferi-lo para onde? E o problema se foi arrastando durante anos... Afinal, aludindo a uma manifestação favorável do Superior da Missão, e pretextando, que a Missão Anchieta já não tem mais aspectos de Missão, lá se foi o presente de grego, para tomar parte na obra mais fundamental da Província, segundo as Constituições...
Em Florianópolis, havia o Ir. Jacó Mallmann. Um santo. Quando jovem pedira para ir à Missão. Não obtivera a licença. O velhinho, talvez nunca desobedecera em seus quase cinquenta anos de Companhia. Agora, em seus velhos dias, já totalmente afeiçoado ao seu trabalho em Florianópolis, teve um desentendimento com o seu superior, no qual talvez ainda tivesse razões de discordar de seu superior. E o quase setuagenário Ir. Jacó obteve a “licença” de ir à Missão, que não obtivera quando jovem, mas desta vez a contra gosto.
Assim - no momento – o ponto de maior responsabilidade na Missão Anchieta, onde se exigiriam as mentalidades mais jovens e maleáveis, está em grande parte sendo dirigido por Irs. idosos. Com tais princípios e critérios de Missão, como poderão as nossas províncias brasileiras e a Companhia, progredir no seu fim?
Uma análise de todos quantos na Companhia pediram para ir às Missões, quem sabe, até em concreto para a Missão Anchieta, seria hoje, um belo campo para se fazer um levantamento, que revelasse os critérios de Missão reinantes em algumas Províncias da Companhia atual.
Mas talvez poderia V. Paternidade pensar que isto se deve à falta de outras pessoas que se ofereçam para tal difícil Missão. Porém, é exatamente aqui que se origina o desrespeito aos princípios básicos que sempre deveriam orientar a Companhia.
As vocações para as Missões, também para a Missão Anchieta do Mato Grosso, são abundantíssimas, e sobretudo entre os irmãos. Só na casa em que vivemos, convivem conosco, cinco a dez irmãos de ótimas qualidades para a Missão Anchieta, e todos jovens que já pediram, alguns uma, outros duas, três vezes ao Provincial para irem à Missão Anchieta.
E quanto às vocações em geral: Um inquérito feito entre os rapazes que se estavam preparando para ingressarem no noviciado da Província Sul-brasileira – revelou que 80% deles eram atraídos à Companhia por vocação Missionária. Tal ideal, inicialmente sempre apoiado pelos nossos orientadores e educadores, parece-se, entretanto, apenas como a isca dum anzol. Uma vez na Companhia o cultivo de tal vocação vai sendo esquecido, quando não substituído sorrateiramente, ou até explicitamente. E os dramas espirituais que tal situação cria, sobretudo, nos irmãos que não tem, muitas vezes, a suficiente preparação ou ousadia de recorrerem diretamente ao Pe. Geral, são por vezes, trágicas. Quando não levam para fora da Companhia, formam homens amargurados, ou então conformados, não, porém, realizados.
Eis o que pretendemos exprimir, quando dizemos, que os carismas próprios da Companhia, se tornaram joguetes de interesses dum homem, duma casa, ou duma Província. Como repreender os que abandonam a Companhia, quando a procuram por um motivo justo e generoso, e depois são em realidade tragicamente enganados? Se hoje se tomam em conta com tanto cuidado os talentos meramente humanos, os nossos pendores para esta ou aquela especialidade, porque não se há de tomar em conta também com o mesmo respeito, a tendência em nós inscrita, não por mãos humanas e interesses pessoais, mas por Deus?
Achamos que se Nosso Senhor, chama hoje tantos para as Missões, talvez seja porque a partir de lá – haja lá muitos ou poucos – se irradia o seu Evangelho ao mundo, talvez de uma forma menos instalada e estática. Que a partir de atos de generosidade, de desprendimento, o mundo seja levado à fé.
A Missão dos índios se defronta hoje com outro grave problema. Poderíamos defini-lo como falta de compreensão, mas tememos que o termo seja exagerado, senão injusto. Por tratar-se de um trabalho que não pode ter compreensão humana, mas unicamente pode ser apreciado à luz da fé, não podemos é claro, exigir uma compreensão, como nada de divino pode ser exigido.
Mas daí surge para a Missão Anchieta em concreto, um grave problema, que nas atuais circunstâncias, pensamos, poder agravar-se cada dia mais. A Missão Anchieta não estende seu trabalho unicamente aos índios, até possui mais obras entre a gente civilizada. E daí nasce o grave problema da Missão dos índios. Há um ano entregamos um Relatório ao Revdo P. Assistente, no qual, contra a opinião da maioria dos missionários dos índios – que propunham uma separação entre a Missão dos índios e as dos garimpos, sustentávamos que a Missão devia ficar unida: isto é, garimpo e índios.
Agora, após o contato com outras tribos de índios em outros Estados do Brasil, mudamos de opinião. A situação dos índios no Brasil – e talvez na América do sul em geral – é a mais desumana que seres humanos possam levar. A propósito, poderíamos fornecer a V. Paternidade os dados de um levantamento que em nossas férias fizemos entre os índios do Rio Grande do Sul e que falariam melhor da realidade que afirmamos, mas a nossa carta ficaria longa demais.
Embora todas as legislações lhes garantam direitos – até especiais – sobre os brancos, eles nada mais são do que joguetes nas mãos de cristãos sem consciência. E por se tratar de homens que por natureza ou caráter, não reclamam, nem tem advogados que os defendam, nem se sabem defender, nem mesmo os bispos e vigários vêem o drama porque passam estes míseros seres humanos em suas próprias paróquias, a suas vistas. Ou quando o percebem, por não lhes conhecer o caráter nada fazem.
A maioria destes vigários e bispos são bem intencionados e alguns almejam a ajuda de pessoas que os circundam neste problema social de suas paróquias. Um bispo – auxiliar de Porto Alegre – nos pediu que fizéssemos um plano de atendimento a estes pobres índios que eles, os bispos, nos dariam cobertura total. Tal inclusive já foi posto em discussão numa reunião de bispos no Rio Grande do Sul.
Pediu-nos inclusive, o bispo, que nós permanecêssemos no Rio Grande do Sul para atender estes índios, ao que respondemos que já estávamos comprometidos com a Missão do Mato Grosso, que realmente estimamos com um amor inseparável. Aliás, a situação dos índios em outros estados do Brasil é a mesma que a do Rio Grande do Sul.
Diante desta situação que se estende a todos os 80.000 índios do Brasil, que ainda não foram destruídos pelo bárbaro processo de extermínio lento – mas sempre brutal – em marcha desde 1500, sempre com os mesmos processos, ficamos pensando numa solução para atingir não apenas os poucos índios da Missão Anchieta, mas também os índios sob a tutela do Serviço de Proteção ao Índio – órgão oficial do governo – e de outros ainda não pacificados, e hoje barbaramente trucidados.
E foi então que retomamos a solução proposta pelos colegas missionários dos índios na Missão do Mato Grosso, que propugnavam uma separação por não se virem suficientemente apoiados pela direção da Missão e da Província, ao qual parece interessar mais o trabalho no setor de garimpos onde rende mais.
Realmente, Pe. Geral, temos pena da situação dos missionários pacificadores de índios ainda bravios, após um fracasso, como o foi da última penetração pacificadora aos índios Beiços de Pau em maio próximo passado! Um deles, ferido por uma flecha, acabrunhado pelo insucesso – e contudo convencido de que é o trabalho número um a ser realizado no mundo – o missionário tem de ouvir ainda a incompreensão de muitos de seus próprios colegas. E em verdade quem possui uma visão clara da situação dos índios no Brasil, não pode deixar, como cristão, de expor a sua vida para salvar da destruição certa a estes índios.
Pensamos que seria uma boa contribuição para o ano da fé, para a Companhia, rever o trabalho dos índios e a sua Missão Anchieta.
Outro motivo que nos leva a proposta que a seguir hemos de expor é a seguinte: Muitas vezes a nossa Província Sul-brasileira já não se sente inteiramente responsabilizada por aquela Missão, como Missão, aludindo que já não possui mais feições de Missão. A opinião nasce daí que realmente os trabalhos nos garimpos e sítios absorvem hoje mais missionários, que a Missão Anchieta entre os índios, para a qual se abriu esta frente de trabalho. E os trabalhos apostólicos nos garimpos, não divergem dos de outras regiões do Centro-oeste-brasileiro, de maneira alguma considerados Missão. E procuram encobrir a Missão entre os índios por ser pouco representativa em números de pessoas atingidas.
Esta opinião está-se transformando em mentalidade que vem prejudicando muito toda a Missão Anchieta. Dentro da própria Missão a questão tem mais  ou menos as seguintes consequências prejudiciais. Não há possibilidade de uma especialização séria. Cada ano é quase destinado um padre que se preparou para trabalhar entre os índios, para ocupar uma paróquia nalgum garimpo. Isto ocasiona no nosso entender um desperdício de forças muito grande e pode dar inclusive, a longo prazo, a impressão de que não se esteja levando nenhum setor da Missão, com real seriedade para a frente.
Pensamos que se Nosso Senhor chama hoje tantos jesuítas para trabalharem no apagado trabalho dos índios, é para se dar real ocasião de proporcionar uma mais plena realização dos mesmos neste setor específico. E se faz tal, não terá suas intenções, o seu fim? E daqui surge a nossa proposta.
Iniciamos com uma pergunta que põe em questão a nossa querida Missão na sua forma atual. Será que Nosso Senhor nos quer a nós missionários dos índios apenas entre os índios da Missão Anchieta? Não visará Ele com tão abundantes operários que se sentem chamados a este trabalho, por parte de nós uma ação mais ampla, conjunta no sentido de atingir também os índios de outras regiões do Brasil e da América, que não tem quem se interesse por eles?
Neste caso formar-se-ia realmente uma equipe especializada de missionários para o setor indígena: Em Antropologia, Sociologia, Ciências Econômicas, Agronomia, na pacificação de indígenas ainda bravios, que então estaria engajada numa espécie de trabalho interprovincial e atenderia também o Serviço de Proteção aos índios na parte religiosa. Mas tal Missão inter-provincial teria então seu superior próprio, independente do superior da Prelazia – dos garimpos de Diamantino.
Resumindo, pensamos que o trabalho de atendimento aos índios como está não pode continuar. Nesta “lenga-lenga”, daqui há poucos anos veremos os nossos índios destruídos e destruídos a nossa vista. A propósito de ilustração, queremos relatar um fato ocorrido em 1963, durante os anos em que trabalhamos na Missão: Uma tribu de índios completamente bravios – os Cinta Larga – foram atacados por quatro expedições de brancos, que com metralhadoras, granadas de mão, fuzis, apoiados com mantimentos fornecidos de avião os queriam exterminar por obstarem a invasão de suas terras. Nós nos desculpávamos laconicamente: não são do nosso território. Realmente era fora do território da Missão Anchieta que tal sucedia. Entretanto, nós estávamos melhor informados do que os próprios responsáveis pela Missão vizinha, cuja sede distava mais da tribu atacada.
Embora incompreendidos, P. Geral, gostaríamos de levar este árduo trabalho avante e gostaríamos de ser ao menos compreendidos e apoiados inteiramente pelos irmãos da mesma Missão, eis porque gostaríamos que V. P. considerasse a possibilidade que propomos, de se criar uma Missão com uma visão mais aberta para o problema indígena do Brasil, mais voltada para o índio, e que exclua oficialmente os outros setores, a fim de não cair na tentação de procurar o que rende mais, em detrimento do que mais necessita ou para o que Deus chama.
V.P. sempre está presente em nossas orações e trabalhos.
Cordialmente vos saúdam, vossos servos em Cristo,

Egydio Schwade, sj

Thomaz de Aquino Lisboa, sj

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