Povos Tradicionais e Desafios Socioeconômicos


Nos trabalhos com povos indígenas e outras populações tradicionais, são freqüentes as argumentações sobre a necessidade de ações em torno da “auto-sustentação” e/ou “geração de renda”. Da parte das entidades de apoio e assistência a justificativa normalmente é econômica em sentido estrito, ou seja, frente aos novos desafios que a conjuntura apresenta, novas necessidades e desestruturação da economia tradicional, faz-se necessário encontrar alternativas para a melhoria das condições de subsistência. Este discurso é muitas vezes incorporado pelas populações tradicionais, no entanto é importante uma reflexão cuidadosa em busca de entender se a questão principal para as comunidades é realmente a necessidade de subsistir, a necessidade de adquirir bens.

O caso dos Manoki (Irantxe) pode ajudar nesta reflexão. Durante toda a década de 1990 a maioria dos jovens saía da Terra Indígena para trabalharem em lavouras de agricultura industrial do entorno de suas terras. Na tentativa de reverter esta situação entidades de apoio procuraram desenvolver projetos relacionados à geração de renda e auto-sustentação. Porém as transformações positivas na última década do ponto de vista econômico e de autonomia parecem ter muito mais a ver com a caminhada sócio-política recente dos Manoki que com aqueles projetos.

Os Manoki, no início do século XX, habitavam um território situado a noroeste do Estado do Mato Grosso. Estimativa do antropólogo Aluir Pacini (Laudo de Pericia Judicial. Processo 2005.36.00.000097-7. 1ª Vara da Justica Federal do Mato Grosso.Cuiabá, 2006), aponta que nesta época a população devia ser de aproximadamente 1200 pessoas. A oeste e a sul do território Manoki (pertencentes a uma família lingüística isolada) habitavam povos com idiomas da família lingüística Aruaki, hoje representados pelos povos Pareci e Enawene-Nawe, e a noroeste os Nambikwara (outra família lingüística isolada). A leste estavam os Tapayuna (do tronco Jê) e a norte os Rikbaktsa (do tronco Macro-Jê). Esse conjunto de povos formava um mosaico sócio-cultural complexo e articulado.

A exemplo do que ocorreu com centenas de povos indígenas da Amazônia e do Cerrado, o século XX foi trágico e determinante para a história dos Manoki. Seu território foi alcançado pelas frentes seringalistas na primeira década do século XX. Por volta de 1908 houve o massacre da população de uma aldeia, no córrego Tapuru, onde relatos dão conta de que sobreviveram apenas uma mulher e seu filho. A tragédia desses contatos se agravou com a introdução de doenças exóticas levando os Manoki a evitarem contatos com a sociedade nacional. Outra conseqüência do avanço da frente seringalista sobre os territórios indígenas foi o acirramento dos conflitos entre povos que eram forçados a adentrarem territórios anteriormente ocupados por outros grupos.

A partir daí da década de 1930, com a população reduzida e acometida por seguidas epidemias de sarampo, as comunidades Manoki começaram a se recolher para próximo da Missão Anchieta – MIA, de Utiariti. Neste processo a população decaiu para menos de 300 pessoas em 1947, segundo estimativa da MIA e , em 1974, a cifra mais baixa de 50 Manoki. Este quadro tendia a ser pior, não fosse a intervenção da Missão Anchieta e da FUNAI” (PACINI, 2006).

No final da década de 1960, sendo ainda numericamente poucos, os Irantxe resolveram se estabelecer numa localidade na margem esquerda do Rio Cravarí, periferia do seu território tradicional.

Entre os anos de 1969 e 1972 os primeiros três empreendimentos agropecuários se instalam na região com financiamento da SUDAM: as fazendas Cravarí, São Paulo Cravarí e Membeca. Na década de 1980 toda a região do Chapadão dos Parecis começa a ser alcançada pela frente agropecuária e madeireira. A população que chega com essa frente tem um ideal desenvolvimentista. Vêem o mundo indígena como atrasado, arcaico, e por vezes com temor. Por outro lado consideram os indígenas como uma população que pode ser incorporada como mão-de-obra ao que consideram o “verdadeiro trabalho, aquele que gera lucro”.

A partir de 1974, assembléias indígenas foram realizadas com o apoio de entidades como a Operação Amazônia Nativa (OPAN) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Diversos Irantxe participaram e apoiaram manifestações e lutas de outros povos. Neste período a articulação com outros povos era bastante intensa

Entre as décadas de 1980 e 1990 houve um período de crescentes dificuldades para os Irantxe em se articular com outros povos indígenas. Com pouco apoio externo era difícil estar presente nos movimentos indígenas mais amplos e de repercussão nacional. Localmente, apesar do aumento da rede rodoviária, os demais povos estavam menos acessíveis devido ao cerco de fazendas e lavouras.

Por volta do ano 2000 o risco de desaparecimento fisico da população havia acabado, porém os Irantxe ainda formavam uma população reduzida (em torno de 250 pessoas). Muitos antropólogos e indigenistas viam como inevitável sua morte cultural. Para estes, os Irantxe sobreviveriam no máximo como “índios genéricos”. A grande maioria da população não falava mais o idioma tradicional, principalmente a juventude. O processo de perda da língua tradicional foi desencadeada especialmente pelos casamentos inter-étnicos, realizados no contexto da vida na missão de Utiariti, que tornaram o português a língua comum entre cônjuges. Para os poucos casais intra-étnicos, ensinar o português para os filhos era uma forma de aumentar as possibilidades sociais, mas também de escapar do estigma de ser “índio brabo”. Muitas celebrações também pareciam ter desaparecido.

A terra Irantxe, agora reduzida a apenas 45.555,95ha, tornou-se uma ilha nativa cercada por um mar de lavouras em monocultura. Os vizinhos eram os fazendeiros. Os homens jovens saíam para trabalhar nas lavouras, principalmente nos serviços de sacaria (serviços braçais não especializados). De fora traziam cachaça, roupas, músicas, e algum alimento. Os velhos faziam suas roças, queixosos por falta de ajuda, mas ainda se configuravam como os principais fornecedores de alimento. As moças esperavam ansiosas pelos bailes, que quase sempre terminavam com muitos bêbados e freqüentes brigas.

A economia dos Irantxe nesse momento aliava elementos tradicionais, trabalho nas fazendas e projetos de apoio externo. Estes projetos eram concebidos como forma de interferir numa economia desestruturada, que necessitava de apoio para se libertar do trabalho nas lavouras monoculturais, danoso à cultura, à natureza e à saúde. No entanto, acabaram fracassando ou obtiveram resultados aquém das expectativas dos proponentes, sendo a maioria das atividades abandonadas tão logo cessava o acompanhamento externo, marcado pela presença de assessores.

Do final de 1999 para o início de 2000 surgem alguns elementos que foram importantes para a caminhada posterior dos Irantxe: a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s) e a volta da presença de membros da OPAN junto aos Manoki, num projeto articulado ao apoio a outros povos da região, o “Projeto Kiwxi”. Este último previa ações nas áreas de economia e resgate cultural.

No âmbito do DSEI foi criado o Conselho Distrital de Saúde que permitia uma articulação dos Manoki com povos do entorno no tema comum da saúde. Foram criados também conselhos locais onde participavam Irantxe, Myky e Enawene-Nawe. Os eventos externos acabavam refletindo em reuniões e conversas internas, aquecendo debates políticos sobre a situação dos Manoki.

Quanto aos projetos no âmbito das alternativas de renda, a OPAN havia conseguido apoio para o financiamento de cursos e fomento a apicultura, fruticultura, criação de galinhas e horticultura. Da mesma forma que projetos anteriores, estas alternativas foram abandonadas pela maioria. Para a apicultura, a continuidade se deu por pessoas que utilizaram a produção de mel para fortalecer sua participação na vida da comunidade através da distribuição de um produto apreciado por todos, especialmente pelas crianças; e/ou pessoas que utilizavam o mel para fortalecer suas relações fora da aldeia, pois vendiam o mel quase sempre diretamente ao consumidor que, além do pagamento monetário, eram ou tornavam-se amigos e propagandistas da qualidade do mel “Manoki”. Para as outras atividades ocorreu mais ou menos o mesmo, embora normalmente muito mais associado ao gosto individual pela atividade. As pessoas que continuaram, notadamente não eram as mais ligadas à fazenda. Assim, apesar de posteriormente terem assumido importância na vida das comunidades, estas atividades não se constituíram em atividade de grande importância financeira, embora a apicultura demonstrasse grande potencial para tanto.

A redução na procura pelos trabalhos nas fazendas só iria ocorrer mais tarde, num processo que diz respeito muito mais a possibilidades e escolhas políticas e sociais do que propriamente econômicas.

Outras circunstâncias que puseram os Manoki em contato com comunidades de povos distintos foram sua participação em intercâmbios e os cursos para formação de professores indígenas que se ampliaram. Para os jovens a participação nas olimpíadas indígenas a partir de 2003 é relatada como importante para estimular a busca em aprender a tradição do povo, já que outros povos presentes sempre mostravam com orgulho suas tradições e os Manoki ficavam acanhados por dependerem de levar os velhos.

Percebendo de alguma forma a situação crítica em que se encontravam, com certo descrédito externo quanto à continuidade cultural do povo, e mesmo incertezas da própria comunidade, iniciou-se um debate interno sobre os rumos do povo. A partir desses debates ganhou força um movimento de re-avivamento cultural e re-significação de elementos da cultura.

Um importante debate que surgiu na ocasião ocorreu a respeito da autodenominação. Os Irantxe tinham contato com outros povos que eram conhecidos por nomes que eles próprios se atribuíam. Um exemplo próximo é os Enawene-Nawe, que quando dos primeiros contatos foram chamados de Salumã e depois acabaram sendo conhecidos por um nome mais próximo do que seria uma autodenominação. Assumir uma autodenominação parecia ser importante para marcar esse momento onde os Irantxe decidiam reforçar sua identidade. Analisando as possibilidades chegou-se ao termo Manoki. O significado do termo manoki é bastante complexo e é certo que não era propriamente uma autodenominação, mesmo porque os Irantxe não tinham este conceito explicitado em sua língua. No entanto havia uma particularidade no conceito implícito neste vocábulo que acabou sendo determinante na sua adoção como autodenominação: só pode assumir a posição de manoki quem é desta cultura. Manoki, em seu sentido original, designa um visitante. Porém não qualquer visitante. É manoki o visitante que compartilha a mesma cultura.

Por outro lado, existia a vontade da reaproximação com o grupo conhecido como Myky, que pelo contexto histórico havia ficado distante. O termo Manoki, ao mesmo tempo em que engloba os dois grupos, não anula a identidade de nenhum.

Essa autodenominação é acima de tudo uma construção política dos Irantxe, agora também Manoki. Entre os propósitos políticos dos Manoki estavam o de afirmar sua existência e sua vontade de permanecer como identidade única e distinta, como povo indígena singular. Estava a vontade de se reaproximarem dos Myky. A vontade de animarem a retomada e re-significação de elementos culturais, dos quais o próprio nome Manoki é um exemplo.

Simultaneamente ao processo de surgimento da autodenominação Manoki, diversos processos ocorreram e somaram-se na reafirmação e reforço da auto-estima desse povo. No campo da luta pelo território tradicional, foi constituído um Grupo de Trabalho (GT) da FUNAI para realizar o estudo antropológico e os Manoki passaram a visitar com alguma freqüência este território para fazer caçadas e apresentar, aos jovens, sítios importantes.

Neste período os Irantxe construíram a primeira casa tradicional depois de um período de aproximadamente 40 anos. Esse movimento começou a envolver muitos jovens que, por vezes, eram os mais animados. Muitos outros eventos tradicionais ocorreram posteriormente.

A posição de peão nas fazendas, que já por algum tempo vinha sendo uma forma de interagir socialmente, perdeu importância simbólica e social e passou a ser internamente questionada, em parte pelo papel subalterno que os Manoki ocupavam. A compreensão de que o sentido dos trabalhos nas fazendas é motivado por processos sociais mais que por necessidades econômicas é fundamental e é confirmada por depoimentos de jovens Manoki que hoje, depois de terem abandonado o trabalho nas lavouras do entorno de sua terra, falam que não tinham necessidade de trabalhar na fazenda, mas que iam porque lá conversavam com outras pessoas, assistiam televisão, dirigiam trator, etc.

É evidente que a motivação não é apenas social. O aspecto econômico estava presente em maior ou menor grau dependendo da situação das pessoas. Porém, a escolha pelo trabalho nas fazendas não se dá a partir do parâmetro do custo de oportunidade financeira, mas pelo custo de oportunidade social. Ou seja, a atividade escolhida não é aquela que paga melhor, e sim aquela que apresenta mais oportunidades de sociabilização.

No contexto Irantxe, onde grande parte do universo social foi desfeito pela drástica redução demográfica e pelo isolamento em relação a outros grupos, e em que os vizinhos mais próximos são peões e patrões em fazendas e lavouras com os quais o único caminho de acesso é via prestação de serviços, é compreensível que as pessoas que podem se submetam a esta situação. O recebimento de pagamento financeiro vem muitas vezes quase como uma obrigação e tende a ser empregado também como instrumento de promoção de acontecimentos sociais. Para os jovens Manoki se utilizava prioritariamente na compra de bebidas alcoólicas, no financiamento de bailes e torneios de futebol e na compra de objetos simbolicamente importantes para a identificação com o universo não indígena.

A partir do momento que o quantitativo demográfico possibilita o aquecimento da vida social interna, que se inicia um processo de intensificação de atividades relacionadas à identidade indígena e que os Manoki começam a ter a oportunidade de se relacionarem com outros grupos externos, o trabalho nas fazendas começou a reduzir. Os símbolos relacionados à fazenda são agora questionados. E é o que acontece com a bebida alcoólica que começou a combatida de forma mais explicita pelos jovens a partir de 2003. Hoje os casos de alcoolismo entre jovens com menos de 25 anos são pouco freqüentes.

O processo de diminuição dos trabalhos nas fazendas se inicia neste momento impulsionado não pelo aparecimento de alternativas econômicas internas, mais pelas novas possibilidades sociais que colaboram para o afloramento de um olhar critico sobre as relações com a fazenda.

É claro que no processo de retorno à aldeia, em que o trabalho nas fazendas perde valor social, as possibilidades econômicas internas têm sua importância, seja em trabalhos tradicionais (como as roças), sejam em projetos alternativos (como na criação de abelhas). Tampouco podemos negar a participação dos salários de professores, agentes de saúde e aposentadorias. Porém, a consolidação de qualquer atividade produtiva, bem como o restabelecimento do equilíbrio econômico de uma população está muito mais relacionada à reestruturação do universo social do que da disponibilidade de alternativas econômicas ou de geração de renda. Estudos estáticos que revelem apenas as carências econômicas sobre o ponto de vista ocidental contribuem muito pouco com a construção de propostas eficientes de reestruturação da economia de populações tradicionais. Um projeto consistente de apoio a reafirmação de identidade e fortalecimento da auto estima pode ser, por si só, muito mais eficaz. O ideal parece ser a combinação de ações de afirmação cultural com a busca do fortalecimento da economia interna e a instrumentalização das relações econômicas externas mais como forma de relação social que como pura estratégia econômica. Nesta perspectiva os projetos de apoio as relações econômicas com agentes externos deveriam priorizar a articulação com agentes político e socialmente importantes, como outros povos indígenas, população envolvente e grupos que possam ter contribuir nas lutas pelos direitos destes povos em vez de priorizar a geração de renda.


Obs.: Este texto foi escrito como resumo de artigo de mesmo título escrito por Adu & Maiká Schwade para compor uma publicação da Universidade Federal do Amazonas que trata da temática indígena e tem como base as conclusões de pesquisa realizada para elaboração de monigrafia apresentada no curso de especialização em indigenismos da Universidade Positivo em parceiria com a ONG Operação Amazônia Nativa - OPAN, por Maurício Adu Schwade.


Maurício Adu Schwade
Casa da Cultura do Urubuí, 13 de setembro de 2011.

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