Nenhum Estado Suporta a Autonomia
Atrevo-me a abrir o leque de opiniões, análises e interpretações correntes da história amazônica. Os missionários jesuítas do período colonial, (distingo aqui os missionários jesuítas dos professores jesuítas de colégios e de universidades, porque enquanto estes eram funcionários de instituições, aqueles procuravam realizar uma vocação ou missão junto a um povo), portugueses ou não, todos vieram para o Brasil em naus dos governos colonialistas. Isto lhes tirava a autonomia e a liberdade no trabalho com os povos indígenas, esses povos autônomos das Américas. Entretanto, a Ordem Jesuítica convoca periodicamente Congregações Gerais para avaliar os impasses que seus missionários enfrentam. Assim, em uma delas, pelo final do século XVII, concluíram que a sua ação junto aos povos indígenas prejudicava a estes e favorecia os comerciantes e fazendeiros. Decidiram, então, iniciar um paradigma de missão que devolvesse paulatinamente aos povos indígenas a autonomia e o domínio de suas terras.
Experiências desse tipo ocorreram simultaneamente no Canadá, no México, em Juli/no Peru, na Bolívia - a famosa República Comunista dos 30 povos Guarani (Argentina, Paraguai e Brasil) onde com o incentivo jesuíta e a pata do boi os Guaranis reconquistaram boa parte do território perdido e, finalmente, a dos aldeamentos da Amazônia.
Em todos eles começou a reinar um novo tipo de governo. Convém observar que quase todos os historiadores, influídos pela literatura dos vencedores, ou seja, dos estados colonialistas que estavam unidos contra o novo paradigma de governo emergente destas experiências com os povos indígenas das Américas, continuam até hoje difundindo a balela de que quem dominava esse modelo eram os jesuítas e não os indígenas, o que não deixa de ser fantasioso. Primeiro porque os missionários jesuítas não passavam de um grupinho insignificante de pessoas dentro das sociedades coloniais e indígenas e eram minoria até dentro da própria Ordem. A maioria da Ordem era, ontem como hoje, constituída de professores de universidades e de colégios, a serviço das elites e muitas vezes em conflito com os missionários. Basta citar um caso da época para se ter uma idéia dessa realidade conflitante. Quando os Sete Povos das Missões dos Guaranis no Rio Grande do Sul foram invadidos por bandoleiros mamelucos e 15 mil guaranis presos e amarrados foram levados ao planalto de Piratininga, onde foram convertidos em escravos dos paulistas, um grupo de missionários jesuítas seguiu atrás dos índios, a pé, até São Paulo para protestar junto aos seus irmãos de Ordem que eram professores dos filhos desses bandoleiros e assassinos, que destruíram as aldeias. Não só não receberam apoio dos seus irmãos, mas nem abrigo lhes foi dado. Seguiram então para Roma de onde voltaram com uma Bula de apoio do Papa. Mas nem assim receberam abrigo nas casas jesuíticas. Chegando ao Rio, ficaram literalmente na rua. Engavetaram então a bula papal que se tornara instrumento inútil e voltaram às suas missões, onde, comprometidos com o povo Guarani, reconstruíram as aldeias destruídas e decidiram defendê-las, daí para a frente, com novos meios. Por isso, em novo ataque os paulistas foram fragorosamente derrotados pelos Guaranis dos Sete Povos, deixando o Governo Colonial português irritado contra os jesuítas.
As missões, reduções ou aldeamentos jesuítas da primeira metade do século XVIII devolviam aos índios a terra, a autonomia, a igualdade e a fraternidade. Não conheciam a fome. No Sul a criação de gado trouxe uma abundancia que virou mito até os nossos dias nos pampas gaúchos e continua sendo celebrada nos CTGs – Centros de Tradição Gaúcha. Em uma ação conjunta, os 30 povos Guaranis formaram, em apenas um ano, uma fazenda de um milhão de cabeças de gado, reconquistando os campos da Serra Gaúcha de São Francisco de Paula. Quando os 7 povos foram destruídos em 1758 essa fazenda foi invadida por bandoleiros portugueses que mataram o gado, deixaram a carne aos urubus e arrastaram o couro até as praias, de onde os navios do Governo colonial português o levaram à Europa sem que a História registrasse sequer um escrúpulo.
Aqui no Norte o peixe abundava nos rios amazônicos e os frutos variados coloriam a margem de rios e igarapés em volta dos aldeamentos. Índios livres progrediam em suas aldeias com força e saúde para além do regime mercantil português. A alfabetização na língua materna nos aldeamentos estava mais avançada do que nas cidades mais modernas da Colônia: Belém, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. A primeira imprensa, que os livros de História do Brasil afirmam ter tido início no Rio de Janeiro, em 1758, em verdade, funcionou em Piraveri (hoje Pombal), na margem do Rio Xingu. E foi extinta pelo mitológico homem de estado Pombal, exatamente em 1758. E se existiu o propalado controle de comércio das especiarias por parte dos jesuítas desses aldeamentos, os pesquisadores ainda precisam provar a quem ele serviu e como funcionou. Se os jesuítas exportaram especiarias, como muitos afirmam, supõe-se que o faziam rumo a Europa. E como esse punhadinho de jesuítas não tinha navio algum, de que frota de navios se valeu? Dos portugueses obviamente não foi e muito menos dos navios protestantes da Inglaterra, França ou Holanda, por razões evidentes.
Pombal inaugurou a fome e a dependência dos povos da região, porque inaugurou a urbanização da Amazônia. A urbanização é um processo, instrumento do Estado, que leva sistematicamente à fome, à depredação da mãe-terra, ao fim da autonomia de qualquer povo. A Revolta dos Cabanos foi uma revolta dos pobres da Amazônia e foi sustentada principalmente pelos indígenas empobrecidos com o fim do sistema das aldeias e dos aldeamentos e a inauguração oficial do domínio português atrás das vilas sob o controle colonial.
Mutatis mutandi, vivenciamos em nossos dias experiência semelhante a dos jesuítas. Em 1987 o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, órgão da Igreja Católica de apoio à autonomia dos povos indígenas e à reconquista da sua terra e da sua cultura, sofreu uma dura perseguição. Os seus missionários foram expulsos de diversas áreas indígenas. Na oportunidade, também nós, da equipe de trabalho do CIMI junto aos índios Kiña, ou Waimirí-Atroarí, fomos expulsos da aldeia Yawará/Roraima, onde havíamos alfabetizado na sua língua materna com aprovação e entusiasmo de índios e de cientistas que acompanhavam o nosso trabalho. Fomos difamados pela grande imprensa com acusações ridículas semelhantes às que pesam, até hoje, sobre os missionários jesuítas que atuavam nos aldeamentos da Amazônia. Acusações de tipo: “serviço à mineradoras estrangeiras”, “agitação”, “amigos do estanho”, “expulsos pelos índios”... Poucos historiadores foram constatar a veracidade das acusações e creio que não passou por nenhuma cabeça de professor de colégio jesuíta ou de PUC – Pontifícia Universidade Católica, subsidiados pelo Governo, dar apoio aos missionários do CIMI. Imagine o que os pesquisadores do futuro escreverão do trabalho do CIMI e do nosso trabalho junto ao povo Waimiri-Atroari, quando fizerem as suas pesquisas e teses de universidade! Se eles forem tão pouco críticos quanto são os de hoje, certamente prevalecerá o que a mídia dominante escreveu. E ao CIMI teria acontecido em 1987 o mesmo que aos jesuítas do século XVIII que tentaram mudar os rumos da Historia das missões indígenas nas Américas não fosse a sua vinculação com a Igreja Católica.
Abrir novos rumos ao conhecimento dos povos amazônicos com olhar crítico sobre a História de mentiras e preconceitos criada pelos governos coloniais; adentrar-se na sabedoria desenvolvida pelos povos do lugar; analisar a ação de quem conviveu despretensiosamente com as populações regionais e partilhou com elas a sua vida e por vezes até ampliou sua visão introduzindo novos conhecimentos úteis; formar parcerias que levem alunos, cientistas e povo aos conhecimentos e aos documentos originais dos vencidos, (por exemplo, para aprofundar o período pombalino, seria interessante hoje manter contato com alguma universidade alemã, próxima a Fulda, onde se situava a sede da Província jesuítica responsável pelo envio de boa parte dos missionários do século XVIII para os aldeamentos amazônicos); esta é uma tarefa essencial que se impõe.
Aprender e ensinar a ler os bastidores da História, a buscar as letras miúdas dos vencidos, suas razões e motivações. O Estado que está aí é uma ficção que o homem criou para aliená-lo e domesticá-lo. A urbanização, o divide et impera - divida e impere, e o dinheiro são os principais instrumentos dessa domesticação. Até hoje nenhum Estado suportou um povo autônomo, realizando a vocação de pessoas livres. Por isso mesmo há que se pensar em novos paradigmas para a administração dos bens da vida na terra. A Amazônia, com sua grande biodiversidade, com os povos indígenas e ribeirinhos que vivem de uma economia invisível ao PIB, poderiam ser uma fonte de inspiração ao Estado. A organização original dos povos das Américas e as experiências dos jesuítas na metade do século XVIII, junto a alguns desses povos, nos oferecem sementes e caminhos na busca de novos paradigmas para a garantia e a reorganização da vida na terra.
Casa da Cultura do Urubuí/Amazonas.
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