Especial 50 anos do CIMI - OS PRIMEIROS PASSOS DA OPAN - Egydio Schwade
Caros amigos e amigas, do CIMI-OPAN e CPT,
Um cordial abraço,
Egydio
Como várias pessoas me tem solicitado entrevistas, textos e falas a propósito dos festejos dos 50 anos da História do CIMI, que tenho vivenciado desde os seus precedentes e surgimento, inclusive, tendo coordenado a plenária do dia 23 de abril de 1972, em Brasília, onde nasceu, vou iniciar hoje a publicação de textos que elaborei em diversos momentos desta história. Acho que estes textos podem contribuir para a recuperação da memória, sobretudo do surgimento e inícios do CIMI. Os textos foram escritos em momentos diferentes da caminhada do CIMI, por isso, peço que não levem a mal se encontrarem redundâncias ou até parágrafos repetidos.
Egydio
OS PRIMEIROS PASSOS DA OPAN
Cheguei à Missão Anchieta-MIA no dia 1 de janeiro de 1963. A situação dos índios era muito difícil. Índios abdicando de sua identidade e para se esconderem, buscavam a cidade. Missão indígena estagnada sobre o internato de Utiariti, o qual tinha a sua continuidade no Lar do Menor em Diamantino, onde a missão prosseguia o processo de ocultação da identidade indígena e consequentemente da perda de sua terra, de sua cultura e de sua autodeterminação. A flor das aldeias, a juventude, era assim levada das aldeias para um beco sem saída. Vi jovens e crianças Rikbaktsa, à tardinha, chegando da aldeia com seus lindos enfeites sobre o corpo nu e no dia seguinte os vi “europeizados”, com roupas “civilizadas”, ajoelhados nos bancos da igreja. A Igreja missionária parada sobre as suas construções, não entendia a aflição desses povos. Doutrinar, europeizar e integrar objetivavam os Estados, tanto o Vaticano, como o Brasileiro.
Passei três anos na Missão Anchieta/Prelazia de Diamantino/MT, o primeiro no internato de Utiariti, onde vivenciei momentos de intensa alegria, mas também os absurdos, contradições e incoerências próprios das missões da época pré-conciliar, sem saber como tomar alguma atitude para superá-las. Mas em Utiariti tive um bom companheiro, na pessoa do superior, Pe. Arlindo Oliveira, sj. com quem discutia frequentemente à noite o trabalho, perambulando ao longo das águas límpidas do Rio Papagaio. Homem muito prático, mas carinhoso com os índios. Algumas vezes, também tive oportunidade de ter boas conversas com o Pe. Adalberto Pereira, sj, antropólogo, que nos abria o horizonte em sua área. Depois de Utiariti passei ainda dois anos no Lar do Menor na cidade de Diamantino. Este não era só para indígenas, mas também para meninos pobres do interior: filhos de agricultores e garimpeiros. Em Diamantino fiquei a sós com os meninos, durante dois anos, sem poder avaliar com ninguém o trabalho. Mas foi ali que comecei a pensar de forma nova, todo o trabalho dos jesuítas e da Prelazia de Diamantino.
Em fevereiro de 1966 voltei ao Sul, à UNISINOS/São Leopoldo/RS, para iniciar o Curso de Teologia e ansioso por comunicar aos colegas que haviam vivenciado os mesmos impasses na Missão Anchieta, o meu plano de mudar os destinos da mesma. Já no dia 9-3-66 escrevi carta de três páginas ao Superior religioso da MIA, Pe. Henrique Froehlich, expondo-lhe, em traços gerais, a proposta. Apontava para a necessidade de “sabermos ser arrojados na realização de planos globais da Missão orientados à luz dos ensinamentos de Jesus e do Concílio Vaticano II. Planos que atinjam o homem nos seus problemas da vida cotidiana.” Colocava isto como a “principal fonte de vocações sobre as quais toda a Igreja estava preocupada.(...) estabelecer um planejamento concreto, de longo alcance para a Missão, nos quais possamos engajar com antecedência qualquer nova vocação boa que se apresente. Não devemos temer de nos aventurarmos a grandes novas empresas – mesmo que estas não agradem aos daqui”...(Província) “O que devemos temer é nos cimentarmos em belos colégios, desajustados às condições do povo que evangelizamos.”
No dia 18 de março, com o plano discutido, corrigido e assumido pelos demais companheiros da Missão Anchieta, estudantes de Teologia em São Leopoldo, o enviamos a todos os membros da Prelazia. O plano tinha dois pontos básicos. 1. Parar os trabalhos da Prelazia, nos dedicarmos prioritariamente à atração dos índios isolados e ao reconhecimento do território da Prelazia que na época tinha 354.000 km2. 2. Levantamento sócio-econômico e religioso total. Vivíamos intensamente a vontade de colocar em prática o Concilio Vaticano II (“Busquem os missionários colher as sementes do Verbo ocultas nos povos” – Ad Gentes) e esmiuçamos as razões do plano. Obtivemos poucas respostas. E as poucas que chegaram, foram lacônicas e contra.
Vendo o nosso plano rejeitado pelos companheiros em campo, Thomaz Lisboa (que se tornara o meu inseparável companheiro de sonhos e ação) e eu, partimos para outro rumo. Achamos que seria difícil mudar algo com o quadro missionário religioso da Prelazia e pensamos na entrada de leigos, não como tapa-buracos, mas como companheiros que pudessem pensar conosco a mudança. Tomamos contatos com jovens católicos e evangélicos (dentro dos princípios do ecumenismo proposto pelo Vat. II) em São Leopoldo e arredores, expondo o nosso plano de ação. Obtivemos adesões entusiastas, mas não conseguimos concretizar a organização de nenhum grupo, durante os três anos que estudamos juntos em São Leopoldo.
Convém observar que eu era então extremamente tímido, ao contrário do Thomaz Lisboa, cujo forte era empurrar logo para ação planos e sonhos que nos vinham abundantes na cabeça. A Semana Santa de 1967 passamos, Thomaz e eu, com os índios do Rio Grande do Sul. Sem que tivéssemos tido algum contato anterior e sem conhecer uma só aldeia, viajamos a sua procura, iniciando por Nonoai. Naquela semana visitamos 5 toldos, como são conhecidas as áreas indígenas no Rio Grande do Sul. Voltamos tristes com a lamentável situação que encontramos e escrevemos 9 artigos, publicados pelo jornal “Correio do Povo” de Porto Alegre, sob o título: “Drama de 1080 famílias indígenas riograndenses”/maio/1967. O quadro apresentado chocou a opinião pública e depois do 3º artigo a Assembleia Legislativa criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI para apurar as denúncias. Fomos chamados a depor. O Rio Grande do Sul era então o único Estado que ainda tinha serviço estadual de proteção aos índios 4 reservas (reminiscência da estadualização da política indigenista pela primeira Carta Magna republicana/1989 e que “integrou” ou acabou com quase todos os povos indígenas dos estados da costa leste brasileira). Mas possuía também 4 reservas federais sob a proteção do SPI-Serviço de Proteção aos Índios. O fato dessa dualidade de serviços provocou, durante os trabalhos da CPI, uma polêmica que resultou na CPI-Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara federal, presidida por Jader Figueiredo e que terminou com a extinção do SPI e a criação da FUNAI, em dezembro daquele ano de 1967. Todos esperávamos uma real mudança na política indigenista oficial.
No mesmo ano levamos à TV o primeiro líder indígena, Juvêncio de Paula, cacique do toldo de Votouro, para que ele mesmo relatasse a situação do seu povo. O seu depoimento foi um sucesso total.
Thomaz Lisboa terminou a Teologia em 1969 e voltou logo para a Missão Anchieta, ansioso por fazer mudanças. Nomeado superior de Utiariti, imediatamente acabou com o internato, animando os índios a voltarem para as suas aldeias e as missionárias e os missionários a os acompanharem. Sustentou uma “bronca” danada de todos os lados, principalmente das irmãs. Algumas se negaram a ir trabalhar nas aldeias. Outras foram às aldeias, onde viveram até a morte ou vivem ainda hoje, muito mais felizes do que em Utiariti.
Fui ordenado padre em dezembro de 1968, no triste dia do AI-5. Logo após a ordenação fui-me encontrar com jovens catarinenses, congregados marianos, reunidos no convento dos franciscanos em Rio Negro/PR. Foi aí, no dia 5 de fevereiro de 1969 que nasceu a Operação Anchieta-OPAN, hoje Operação Amazônia Nativa.
Em julho do mesmo ano já enviou duas equipes, uma para o Mato Grosso e outra para postos indígenas do Rio Grande do Sul, para conhecerem possíveis campos do seu futuro trabalho. E no início do ano seguinte, 1970, a OPAN, enviou os primeiros voluntários e voluntárias, católicos e evangélicos, para as prelazias de Diamantino/MT e Guajará-mirim/RO, iniciando um novo caminho da Igreja Missionária.
Esses jovens chegavam às aldeias com muita simplicidade, tanto nos seus trajes, como nas atitudes, por isso tiveram muito boa aceitação dos índios e bom entrosamento com os missionários que já atuavam nas aldeias. Integravam-se na situação dos índios, sem exigências especiais e fora dela, na cidade, o abrigo de um era o mesmo do outro, rompendo a tradicional discriminação reinante, seja entre missionários e leigos, seja entre missionários e índios. Ninguém doutrinava. A palavra de ordem da OPAN era: encarnação.
A sede da OPAN em Cuiabá virou um dos centros de irradiação dos novos rumos da Igreja missionária. Ali, índios, opanistas, padres e bispos de frente, igualados, discutiam em encontros informais e formais. Foi sob este impulso que a mudança se implantou nas missões do Centro Oeste e Norte do País, entre 1970 e 1973.
Em fevereiro de 1968, sob a iniciativa da CNBB, um grupo de missionários indigenistas de diversas congregações religiosas se reuniram em Morumbi/SP. Preocupados com a situação das missões indígenas católicas buscavam também novos caminhos. A iniciativa se repetiu nos anos seguintes sem grandes avanços e, por isso, a insatisfação crescia no meio religioso, onde também se reclamava a necessidade de um instrumento que garantisse novos rumos para as missões religiosas. Estas discussões e a crescente insatisfação entre os missionários, culminou com a criação do Conselho Indigenista Missionário- CIMI em abril de 1972. De início foi escolhido um Conselho de especialistas do indigenismo para dirigir o órgão, cujos membros não abdicavam de sua rotina diária para se dedicar e fomentar os rumos que a pastoral indigenista reclamava. Durante o primeiro ano a ação do Conselho se restringiu à discussão de uma proposta para o novo Estatuto do Índio, o qual, aliás, apresentou muito pouca novidade, sobre aquele dos militares, que entraria em vigor em julho/73.
A insatisfação dos missionários continuou e refletiu-se sobre o Secretariado Nacional da CNBB, dirigido por D. Ivo Lorscheiter. Este propôs, então, uma reunião do Conselho propondo a criação de um Secretariado Executivo para o CIMI, a exemplo da CNBB. Naquele ano eu havia deixado a direção da OPAN, onde atuei como Coordenador Técnico, entre 1969 e 1973. Estava voltando para as bases indigenistas do Noroeste de Mato Grosso, quando recebi convite para participar dessa reunião, no dia 30 de junho de 1973, onde foi criado o Secretariado Executivo do CIMI do qual fui escolhido, na mesma data, secretário executivo.
O Secretariado Executivo propôs e apresentou um programa que possuía duas vertentes: 1) realizar assembleias de lideranças dos povos indígenas e 2) realizar encontros de pastoral indigenista supra circunscrições eclesiásticas com a presença d@s missionári@s da região, lideranças indígenas dos povos da região e indigenistas de outras organizações e denominações religiosas interessadas.
Mas para efetivar esse programa o Secretariado Executivo do CIMI necessitava de pessoas preparadas e disponíveis que as instituições religiosas possuíam, mas não disponibilizavam.
Quem garantiu essa força de expansão do CIMI, foi a OPAN que ofereceu a primeira equipe de indigenistas para o Secretariado Executivo. E a força encaminhada nos primeiros anos do Secretariado do CIMI, garantiu e garante até os dias de hoje, em boa parte, o dinamismo de sua ação. (Destacaram-se nas áreas mais difíceis do Sul, Norte e Centro Oeste, Sílvia, Ivar, Rosa, Darci, Nelson, Sandra, Ivo-Calu, Antonio, Tere, Chico, Egon, dentre dezenas de outros, sem falar das pessoas ligadas a duas organizações estrangeiras, a OED da Áustria e TVC da Itália, cujos membros integravam no Brasil o quadro da OPAN. Alguns ainda se destacam até hoje como impulsionadores da ação do CIMI ou da OPAN. (Doroti, minha companheira de indigenismo durante 32 anos, membra da OPAN, foi a primeira coordenadora do CIMI-Amazônia Ocidental, entre 1976 e 1978 e coordenou o início da implantação da ação indigenista da Igreja nas Prelazias Acre-Purus, Cruzeiro do Sul, Lábrea e Humaitá.)
De 1970 a 1980 a OPAN enviou dezenas de jovens às comunidades mais carentes e abandonadas das prelazias de Diamantino, Porto Velho, Guajará-Mirim, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Lábrea, Humaitá, Tefé, Alto Solimões e Roraima, desencadeando o novo modelo de missão junto aos povos indígenas mais abandonados da Amazônia.
Os voluntários da OPAN eram iniciados em um curso no Sul e outro na Missão, junto com os companheir@s religios@s para entrosarem, na medida do possível, o seu trabalho com os mesmos.
Daí para frente foi também a OPAN e alguns religiosos e religiosas rebeldes às estruturas das sua instituições que começaram a avançar decididamente a causa indigenista da Igreja em todas as direções e por todo o país, tornando os objetivos do CIMI uma realidade que conseguiu dar uma nova face aos povos indígenas brasileiros. Não doutrinadores e nem catequizadores, mas companheir@s encarnad@s em sua luta pela sobrevivência e autonomia. Terra, cultura e autodeterminação era o Evangelho, a Boa Nova, desses jovens que se encarnavam na realidade das aldeias indígenas por todo o país.
E foi essa nova postura ou atitude, que fez os povos indígenas voltar a acreditar em si, a se reunirem em assembleias, a voltar às suas tradições e à luta pela terra e que os fez desde então crescer em número e em vontade de viver.
Casa da Cultura do Urubuí, 8 de janeiro de 2014,
Egydio Schwade
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