Especial 50 anos do CIMI - O Massacre do Paralelo 11 - por Egydio Schwade
No dia 29 de outubro de 1963, vi surgirem de uma trilha do cerrado, na beira do pequeno aeroporto de Utiariti, ao lado do Rio Papagaio, primeiro dois, depois mais 37 seringueiros. Foram-se aproximando lentamente do internato indígena de Utiariti. Arrastavam-se sob um ‘bucho’ (saco seringado) pesado e sob um corpo e uma consciência cansados. Mas o seu pecado, com certeza, não era tao grande quanto o dos seus patrões: Antônio Junqueira e Sebastião de Arruda. Haviam acabado de eliminar, um grupo de criminosos que mataram muitos índios e seringueiros inocentes, a serviço desses seringalistas. No levante mataram Amorim, encarregado do seringal Juina-Mirim, da Firma Arruda-Junqueira e mais 5 cinco capangas.
Acolhidos por nós em Utiariti e após um dia de descanso, começaram a revelar histórias de muita dor e o Pe. Arlindo Oliveira as foi gravando em fita cassete ali no meu escritoriozinho da escola. Ali foi revelado o Massacre do Paralelo 11, cometido contra os índios Cinta Larga a mando dos donos da Firma Arruda-Junqueira. Diversas aldeias Cinta Larga foram massacradas com extrema perversidade e crueldade. Entre os seringueiros chegantes havia quem participara pessoalmente dessas ações. Graças às revelações do grupo, esses acontecimentos vieram a público, primeiro pela revista alemã, Der Spiegel. Depois, em 1967, através do Relatório Jader Figueiredo da CPI do Índio. Este relatório abalou a Ditadura Militar que tentou abafar os fatos, fazendo sumir toda a edição. Felizmente, o então diretor do Índio, (possivelmente Carlos Moreira Neto), escondeu um exemplar, que foi encontrado, recentemente por Marcelo Zelic, que o difundiu na Comissão Nacional da Verdade, criada pela Presidenta Dilma Rousseff.
Os antecedentes da revolta dos seringueiros do Juina-Mirim, eram conhecidos pelos habitantes deste Norte de Mato Grosso. Morte de dezenas de inocentes: índios, seringueiros, rapto de mulheres dos seringueiros e violência constante de todo o tipo. Públicos ficaram também os nomes dos responsáveis, os donos da Firma Arruda-Junqueira: Sebastião de Arruda e Antônio Junqueira.
O estopim da revolta aconteceu quando o Amorim mandou matar, de forma gratuita, um companheiro seringueiro. A vítima suplicava ao Amorim: ”Por Aquele que te deu o leite que bebeste no seio de tua mãe e que fez as estrelas do céu, não me mates!” Resposta: ”Não você morre aqui mesmo!” E o matou a tiros e queimou o seu corpo. Relataram os seringueiros amotinados que encontraram ainda o corpo da vítima desenhado nas cinzas.
Encabeçados por um tal de “Paraná”, seguiram rumo à sede do seringal, convocando os seringueiros pelo caminho. Cercaram a sede e surpreenderam o Amorim e seus 5 capangas, liquidando-os todos. Recolheram o arsenal de armas da Firma Arruda-Junqueira que vi quando foi abrigado num caixote, em Utiariti: 3 metralhadoras, 5 granadas de mão, 6 mosquetões, 3 carabinas, 25 revolveres calibre 1.38, 6 revólveres Mause (1) caibre 1.45, 10 rifles calibre 1.22, 2 foices de briga e 2 chicotes de arrame farpado. Sobre as metralhadoras, mosquetões e alguns dos revólveres, se lia a advertência: exclusivo do Exército Brasileiro.
Após a morte do Amorim e seus capangas, era intensão dos amotinados, prosseguirem em sua ação de ‘limpeza’ dos seringais da Firma Arruda-Junqueira, atacando outro barracão situado nas Águas Brabas, no rio Juruena, comandado por outro criminoso, conhecido como ‘Paulista’. Mas na manhã seguinte ao motim ocorreu um desentendimento com o líder ‘Paraná’ o qual, deslumbrado com o arsenal de armas, propunha rumar para o Pará afim de venderem ali as armas. Os demais eram contra. O desentendimento provocou a morte do ‘Paraná’.
Resolveram então se dirigir a Utiariti e pedir a intermediação do diretor: Pe. Edgar Schmidt Este, pego de surpresa, sem nenhuma experiência para conduzir uma situação dessas, colocou o rádio da escola à disposição dos amotinados para se entenderem diretamente com o dono do seringal, Antonio Junqueira. Ainda não existia o CIMI para prestar assessoria!
Uma mediação supunha a aceitação de algumas condições por parte do seringalista Antonio Junqueira, ente elas:
“- evitar um acordo entre parceiros desiguais.
- garantir um tratamento humano para os seringueiros em seu trabalho.
- sinceridade no diálogo.
- presença de membros do Exército para garantir a volta das armas ao seu lugar de origem: o Exército Brasileiro.” (como observei na época em meu diário) Algo completamente utópico para se exigir de ladrões e criminosos profissionais do tipo desses donos da Firma Arruda-Junqueira. Obviamente nada disso se conseguiu.
Finalmente, após longas discussões pelo rádio, já cansados pela demora de uma solução, foi acertado um encontro pessoal do seringalista com os seringueiros em Utiariti, para decidirem o seu futuro, bem como, o destino do armamento recolhido no Seringal. O encontro aconteceu no dia 17 de novembro de 1963, ali mesmo sob as mangueiras do interanato de Utiariti.
Para demonstrar sua força e que vinha “acobertado pela lei”, o Junqueira se fez acompanhar de um pelotão, da Polícia Militar de Mato Grosso,
Junqueira argumentava que os seringueiros foram excessivos, matando indefesos.
Os seringueiros em resposta diziam estranhar tal inquérito pois ninguém fazia nada quando o Amorim e seus comparsas matavam inocentes seringueiros.
No meu diário anotei: “O Mato Grosso sofre muito por causa da falta desses supostos patrões ‘inocentes’. Os índios Cinta Largas e Canoeiros sofreram chacinas. Apalpei as costas de um peão com profundas marcas de chicote de arame farpado. Eram sulcos mais profundos do que as rugas na testa dos velhos patrões. E esses, lá em São Paulo ou Cuiabá, lavam as mãos qual Pilatos. Era preciso existirem chicotes de arame farpado para arranhar e sulcar as consciências irresponsáveis adormecidas. O fel do sofrimento corre mais abundante neste Norte do Mato Grosso do que o látex das seringueiras feridas.”
Resultado: a Polícia devolveu as armas ao seringalista criminoso, Antônio Junqueira. Os 39 seringueiros, foram obrigados a subir em um caminhão supostamente da mesma Polícia Militar. A maioria foi largada ao longo do caminho rumo Cuiabá. Os três lideres principais tiveram que acompanhar a Polícia até Cuiabá para responderem em nome de todos a um interrogatório, com a promessa de serem libertados em seguida. Em verdade, acabaram presos durante um ano na cidade de Diamantino. Quase semanalmente eu ou um grupo dos meninos do Lar do Menor, que eu então dirigia, os visitávamos. Durante esse tempo fizeram um relatório manuscrito, onde contam os acontecimentos no seringal e os crimes dos seringalistas, contra seus colegas seringueiros e fazendo referencia aos crimes contra os índios. O manuscrito entreguei nas mãos do Pe. Adalberto Pereira, sj e deve estar hoje no Centro João Bosco Burnier, em Cuiabá. Cópia datilografada, se encontra na Casa da Cultura do Urubuí, em Presidente Figueiredo/AM.
Um dos seringueiros de nome, Ataíde que participou da chacina de uma aldeia Cinta Larga, feita a mando dos donos do seringal Juina-Mirim e que foi talvez o principal autor das revelações do Massacre do Paralelo 11, foi preso em Cuiabá e ficou na prisão até a sua morte. Pe. Iasi, que o visitava na prisão, alertou diversas vezes a opinião pública, de que quem deveria estar ali em seu lugar, eram os donos no seringal: Antônio Junqueira e Sebastião de Arruda.
Estes seringalistas criminosos nunca sofreram repressão alguma pelos seus atos. Ao contrário, tornaram-se íntimos da Ditadura Militar que os apoiava. Basta lembrar que em 1975, quando na oportunidade da 1ª. Assembleia Nacional do CIMI, oportunidade em que organizamos também o programa da recém-criada CPT-Comissão Pastoral da Terra, solicitamos a presença de um representante do Governo para nos dar uma visão da questão agrária no País. E esta nos enviou o Diretor do INCRA que era então Hélio Palma de Arruda, irmão de Sebastião de Arruda, um dos donos do seringal Juina-Mirim!
Nota: A propósito deste acontecimento o Pe. Adalberto Pereira, sj, observava: “Maldito Rio Juruena que nos impede de dar apoio aos Cinta Larga.”
É que do outro lado do Juruena já era Rondônia ou Prelazia de Porto Velho. Assim, o massacre do Paralelo 11 que aconteceu nas barbas da Missão Anchieta-MIA, (a sede do seringal Juina-Mirim, ficava à 6 km de uma missão da MIA, Barranco Vermelho), há mais de 200 km de Vilhena, a mais próxima missão da Prelazia de Porto Velho. Foi este um dos acontecimentos me fez refletir muito e tomar decisões futuras para que a Prelazia de Diamantino, iniciasse uma mudança radical em sua ação. Basicamente:
1. iniciar por um levantamento geral de toda a Prelazia.
2. atender prioritariamente as populações mais necessitadas, (e citava em especial os índios isolados), superando o velho conceito de limites geográficos, políticos e eclesiásticos: estado-município, missão-paroquia, como aliás implicitamente o Concílio Vat. II solicitava.
Por isso, tão logo voltei ao Sul para continuar meus estudos, já um mês após minha chegada, escrevi uma carta, neste sentido, ao superior religioso. Como não foi levada a sério por este, enviamos, uma carta conjunta, com os colegas estudantes jesuítas, que havíamos passado pela experiência de mestrado na Missão Anchieta, carta que também não foi levada a sério. (Os originais desses documentos se encontram no Centro Burnier, em Cuiabá e cópia na Casa da Cultura do Urubuí, Presidente Figueiredo/AM).
Foi esta atitude dos superiores que levou ao Pe. Thomaz Lisboa e a mim a seguir por novos caminhos: Thomaz, nomeado superior do Internato de Utiariti, junto com o Pe. Albano Ternus, fecharam Utiariti, encerrando automaticamente também o Lar do Menor de Diamantino. E eu criei a Operação Anchieta-OPAN, que trouxe às missões novos agentes missionários, “com uma visão nacional e até internacional da questão indígena”, como consta em suas linhas de ação originárias.
Casa da Cultura do Urubuí, 30 de julho de 2019,
Egydio Schwade
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