Deus acima ou Deus Escondido, no meio? - Egydio Schwade
Suponhamos que em definitivo sejamos julgados pela observância da “lei da liberdade” (Tg. 2.12) inscrita em nossos corações e não pelo Direito Canônico ou pelas leis criadas por vereadores, deputados e senadores...
De 6 a 9 de junho, realizou-se em Santarém o IV Encontro da Igreja Católica da Amazônia Legal, tendo assistido ao evento pela internet. E me marcou a aula de Eclesiologia, dada por Alessandra, índia Munduruku. Resumindo: Segundo Alessandra Igreja é ser luz dos povos. Precisa encarnar-se na realidade “dos povos indígenas, defendendo os quilombolas, os pescadores, todos que precisam”. “Tem que sentir, a pele, a dor. Sentir o corpo também!” e sem fronteiras políticas e eclesiásticas: ”Eu sou da aldeia da Praia do Índio, mas eu venho acompanhando todo o povo Munduruku do Médio e Alto Tapajós, inclusive na terra do Teles Pires. E como vice-coordenadora da APEPIPA, eu também estou conhecendo outros povos. Os Apyterewa, o povo Parakanã. Fui nos Yanomami, participando. É triste ver a realidade desse povo”.
E ao final, para não deixar dúvidas, encenou como o Cristo na Ceia derradeira; agarrou o braço do vice-presidente da CNBB, ao seu lado, e concluiu:
“O Padre não pode ficar sozinho. Nós também podemos agarrar os padre e dizer: ‘Nós estamos juntos! Mas essa aliança tem que continuar defendendo os povos indígenas, defendendo os quilombolas, os pescadores, todos que precisam. E vamos dar um basta nestes genocidas. Porque aquele homem que tá lá hoje no poder, fala em nome de deus. Mas que deus é esse que destrói, que violenta? Nós queremos um Deus que sente. Porque Deus andou no meio de nós, Deus está no nosso meio, em qualquer um de nós, aqui, oh!, (bate no peito), no coração. Vamos cuidar, vamos denunciar, vamos levar as vozes das populações indígenas. Denunciar mesmo, para tirar os invasores de dentro da terra indígena”. (Veja a aula completa em anexo)
“Servir”, gente solidária, de olho aberto às necessidades alheias, gente acordada, ativa, móvel, serviçal, gente de toalha na cintura, “colhendo as sementes do Deus Oculto”, “luz e vida dos povos”: mesa farta para todos. Igreja.
“Ser servido”, gente estável, engravatada, parada, constrangida por montanhas de leis, metralhadoras engatilhadas na trincheira da morte. “Estado-cristão”.
Dois modelos antagônicos que marcam a História da humanidade nos dois últimos milênios. E dois personagens deram rumo a estes paradigmas: o 1º foi Cristo com sua vida e ao final, encenou, lavando os pés do povo, para não deixar dúvidas. O 2º foi o Imperador Constantino Magno, cooptando lideranças do Cristianismo para a sua prática: construção de monumentos, criando leis para manter o poder, os privilégios de uma elite e espalhando legiões da morte.
Nos primeiros 313 anos do Cristianismo, temos uma Igreja a serviço do povo, sendo luz e guia do Bem Viver. Sua ação consistia em caminhar de olhos abertos, identificando e cultivando a sabedoria dos povos. Levando solidariedade em todas as direções do Planeta, encarnando-se na realidade da gente, sem limites e sem fronteiras, sem sedes e sem templos. Seu Deus era o Deus da História, escondido no meio do povo, revolucionando, atiçando a “Sarça” escondida em cada pessoa, rumo à prática da fraternidade. Pelo fato de não cultivarem deuses em templos de pedra e barro, foram até acusados de ateus pelos funcionários do Estado Romano. Para contornar as acusações, Paulo apontou para a inscrição no altar de um templo grego: “Ao Deus Desconhecido”. Foi a “chave” que usou para provar que os Cristãos não eram ateus:
“Então Paulo levantou-se na reunião do Areópago e disse: "Atenienses! Vejo que sois extraordinariamente religiosos, em tudo. Ao passar pela cidade e contemplar os objetos de vosso culto, encontrei um altar em que está escrito: “Para o deus desconhecido”. Pois bem, aquele que venerais sem conhecer, é esse que vos anuncio. "O Deus que fez o mundo e todas as coisas que nele existem. Sendo o Senhor dos céus e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos de homens, como se necessitasse de alguma coisa, ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas. De um só fez nascer todo o gênero humano para povoar toda a face da terra. Estabeleceu para os povos os tempos e os limites de sua habitação, tudo para que procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo às apalpadelas. Pois não está longe de nós. É nele que vivemos, nos movemos e existimos”. (At. 17. 22-28)
Naquele início do Cristianismo também existiam muitos povos, como hoje, povos que se distinguiam da prática do Estado. Cada um celebrando a vida e praticando a solidariedade do seu jeito. E os cristãos não interferiam, mas se inseriam neles. Incentivavam o jeito de ser daqueles povos. Os conflitos eram resolvidos em reuniões e concílios. Por exemplo, alguns povos da Ásia Menor sentiram o problema do bairrismo do povo judeu que queria impor o seu jeito de ser aos povos interioranos, obrigando-os a se submeterem aos seus costumes. Convocou-se então um Concílio para Jerusalém que encerrou o assunto:
“... se reuniram para examinar a questão. Ao fim de longa discussão, Pedro levantou-se e falou: “Irmãos, Deus que conhece os corações, manifestou-se em favor deles, dando-lhes o Espírito Santo como a nós. Não fez distinção alguma entre nós e eles. Pois então, por que provocais a Deus, querendo impor um peso que nem nossos pais e nem nós mesmos pudemos suportar? Aliás, seremos salvos do mesmo modo que eles”. E toda a assembleia se calou. Então os apóstolos e presbíteros, de acordo com toda a Igreja, escolheram alguns homens influentes entre os irmãos para comunicar de viva voz que pareceu bem ao Espírito Santo e nós, não vos impor nenhuma outra exigência além das necessárias”. (At. 15.)
Naquele período do Cristianismo, também não existiam templos, basílicas, catedrais, santuários, igrejas “cristãs” de cimento e pedra, nem torres, sedes e nem palácios episcopais. A prática do Bem Viver, não tinha muros, limites geográficos, políticos e circunscrições eclesiásticas.
Os cristãos se reuniam nas casas de família ou em salas de centros comunitários:
“No primeiro dia da semana, estávamos reunidos para partir o pão. Paulo que ia viajar no dia seguinte, conversava com os discípulos e prolongou a conversa até meia-noite. Havia muitas lâmpadas na sala onde estavam reunidos. Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado no parapeito de uma janela, adormeceu profundamente, enquanto Paulo falava. Vencido pelo sono, caiu...” (At. 20. 7-9).
Praticavam um socialismo radical. Não havia ricos e nem pobres entre eles. Dividiam os seus bens, segundo a necessidade das pessoas. E isto provocou união e alegria geral. O Papa não precisava pedir para que os fiéis fossem às periferias. Pois não vivia prisioneiro em palácio, mas livre, no meio do Povo de Deus, na periferia, no interior. Os cristãos se reuniam para celebrar a vida, a união. E quando passava um mochileiro, se reuniam para ouvirem notícias sobre a situação das pessoas nas comunidades distantes: seus problemas, como levar-lhes solidariedade e apoio. E não faltavam jovens que se ofereciam para realizarem sua vocação, irem aonde havia um povo necessitado.
Ninguém patenteava descobertas. Com alegria, levavam os resultados de suas descobertas, de novos produtos, de novas técnicas (...) às comunidades vizinhas e distantes. Um socialismo vivido, nu e cru. Não havia concorrência entre eles.
Os dirigentes do Estado Romano, ao contrário, criavam seus deuses, moravam em palácios, no centro dos centros urbanos, cercados de leis, muros, templos e em farras que garantiam pela violência praticada contra os povos. Um modelo religioso preconceituoso, concentrador, urbanóide e exclusivista, “ópio do povo”, estruturado sobre leis que visam garantir, a moeda, os muros e os privilégios e apagar as “sarças ardentes”, sufocando o Deus Escondido.
Lendo a Bíblia, vê-se que a liderança do povo judeu, ao longo dos milênios, também caiu na tentação de adotar o paradigma do Estado Religioso, substituindo o Deus Escondido por leis, templos e reis. Os profetas recriminavam esta atitude. Houve até quem se retirasse com a sua comunidade a uma montanha para, em ambiente tranquilo, alertá-los. E contou-lhes a seguinte parábola:
“Escutai-me cidadãos de Siquém, e que Deus vos ouça! Certa vez as árvores puseram-se a caminho a fim de ungir um rei para si. ‘Reina sobre nós’! - pediram para a oliveira. A oliveira respondeu: “Vou renunciar ao meu azeite com que se honram deuses e homens para balançar-me sobre as outras arvores”? Então as árvores disseram para a figueira: “Vem tu reinar sobre nós”! E a figueira respondeu: ‘Vou renunciar à minha doçura, a meus saborosos frutos para balançar-me sobre as outras árvores’? Então as árvores disseram à videira: ‘Vem tu reinar sobre nós’! E a videira respondeu: ‘Vou renunciar ao meu vinho que alegra deuses e homens para balançar-me sobre as outras árvores’? Então todas as árvores disseram ao espinheiro: ‘Vem tu reinar sobre nós’! E o espinheiro respondeu para as árvores: ‘Se deveras quereis ungir-me como vosso rei, vinde abrigar-vos à minha sombra. Senão, que saia fogo do espinheiro e devore os cedros do Líbano”! (Juízes 9. 7-15).
E aqueles líderes religiosos judeus, fariseus estatizados em seus palácios, sentiram no modo de ser livre de Jesus uma ameaça. Por isso o mataram. O Estado Romano levou terror, sofrimento, perseguições e morte aos primeiros cristãos. Mas estacionado em suas cidades, o Império Romano, não conseguiu frear o espírito socialista e solidário dos cristãos que se alastrava pelo interior e pelas periferias. Por isso, em 313, o Imperador Constantino, vendo que não conseguia erradicar pela violência este modelo de vida, já enraizado em todos os cantos do Império, encenou a paz com os cristãos. Foi-se aproximando e conhecendo as suas lideranças. E em 325, convocou um Concílio, em Nicéia, seu palácio de veraneio na Ásia Menor. Consta que 320 bispos atenderam ao convite. Outros não caíram na armadilha. Permaneceram nas comunidades periféricas. O discurso de abertura foi feito por Constantino. Seu conteúdo podemos imaginar a partir das falas dos chefes de Estado de hoje! Para além das diretrizes doutrinárias daquele Concílio, é preciso prestar atenção às transformações que se seguiram, demonstrando a adesão dos dirigentes da Igreja ao modelo do Império. Surge o paradigma do “Estado-cristão”, sem novidades sobre a prática do Estado Romano.
Os líderes cristãos acabaram sendo reféns do Estado. Para eles, o Cristianismo deixou de ser uma atitude de fé solidária, popular, laica, para se tornar uma religião de Estado. As obras que se seguiram o demonstram. No ano seguinte ao Concílio de Nicéia, para festejar o seu 20º ano de poder, o Imperador mandou construir 3 monumentos: as Basílicas de Roma, de Belém e de Tréveris. Modelo estatal que se fixou em monumentos mundo afora, até os nossos dias, como Trindade no Goiás e Aparecida e o Templo de Salomão em São Paulo. E milhares de outros, sem grandes diferenças com aqueles outros templos estatais e capitalistas modernos: bancos, supermercados, shoppings...
Das casas de família e salas comunitárias onde os cristãos se reuniam para as rezas, discussões e o planejamento da prática da solidariedade, passaram às igrejas e palácios, construídos, orientados e mantidos como o Estado, à base de dinheiro e de leis. Esquecidos do desafio que Jesus dirigiu aos judeus:
“Destruí este templo e eu o reconstruirei em três dias”. (...): “O templo do qual ele falava era o seu corpo”. (Jo. 2.19 e 21)
Corpo humano de carne e osso. Para os cristãos, ‘templos’ são as pessoas vivas e não construções. Ao transformar aquelas lideranças cristãs em funcionários de Estado, Constantino estatizou-os, sem mudar a prática do Império. As guerras e perseguições contra os povos das periferias continuaram. Prosseguiram as invasões do território dos povos originários: dos celtas, germanos... Continuou a política de “integração nacional” dos povos em volta do Mediterrâneo, forçando-os a abandonar os seus costumes, a sua cultura, para facilitar a sua espoliação. Uma prática que se estende até aos nossos governos com seus projetos de “integração nacional” dos povos indígenas. Bispos e pastores foram se acomodando ao discurso e à prática do Estado, chame-se este de Império, Reino ou República. E assim também nasceu o Estado do Vaticano, com limites legais e territoriais.
O Cristianismo do lava-pés da Última Ceia e vivido nos primeiros 313 anos, sobreviveu marginalizado nas periferias, nos povos originários e nas populações excluídas, oprimidas e perseguidas pelo Estado.
Equivocadamente, teólogos e exegetas, interpretando mal (ou com segundas intenções) o texto de Paulo sobre o “Deus Desconhecido”, organizaram catecismos, propagando o deus negativo do Estado. Um deus acima dos homens que ignora Deus Vivo, Escondido, agindo no meio do povo. Tudo o que as pessoas humanas não alcançam, virou Deus: o onipotente, o infinito, o onisciente... Propagam o Deus que mantém a religião do Estado. Os cristãos funcionários de Estado, se alienam do Deus Escondido, desde a sua concepção que os chama à liberdade de filhos, para uma missão que só eles podem realizar. Um chamado que se dirige, não apenas a celibatários e celibatárias, pois é uma “sarça” acesa em todos e todas. E cada um, a seu modo, tem que obter o ambiente de liberdade para torná-la vida plena. Lembro-me de um arcebispo de Manaus que toda a vez que ordenava novos padres lhes recomendava: “Não sejam funcionários da Igreja”! Uma recomendação utópica, impossível dentro do modelo estatal concebido em Nicéia. As leis do “Estado-cristão” limitam o espaço das pessoas para a realização de sua vocação, única e exclusiva no universo. E a diferença se traduz em criatividade para a prática do Bem Viver, em criar algo que liberte e aumente a felicidade do outro. Se traduza em solidariedade para com as pessoas que necessitam se libertar do “estado de coisas” que as oprime e oprime a humanidade.
Todas as instituições que dependem de Estados, tendem a ‘estabilizar’ as pessoas. No que se ensina e no que se aprende, prevalecem as leis, privilégios, dinheiro sobre o ser, “serviço”. Abafam o desejo de ir ao encontro do outro, serem solidárias. Na caminhada do povo judeu este obstáculo iniciou quando o Deus Escondido, a “sarça ardente” foi substituída pelos mandamentos do “não”. E a História dos “Estados-cristãos” trouxe o Direito Canônico e milhões de leis que descem dos Congressos para manter o mercado e o capital das “elites”. E, quanto mais poder acumulam, tanto mais opressores, destruidores, escravizadores, doutrinadores e gananciosos ficam, deixando as pessoas inseguras e afastando-as do seu ser. E no seu encalço, cai também o meio ambiente. Ninguém espere colaboração do Estado para salvar a vida do Planeta. O paradigma Estado frustra qualquer esperança de melhores dias para a humanidade.
Trata-se de um paradigma nocivo que não tolera a autonomia. E quem o governa tem poucas chances de governar para o engrandecimento daquele que vive dentro das pessoas e no meio do povo e que chama à liberdade. Todos são levados a uma prática que contraria a sua ciência congênita, pondo obstáculos à realização de suas vidas: a missão que só elas possuem condições de realizar.
A maioria das injustiças, violências, guerras, invasões de território sofridas pelas gentes, após o Concílio de Nicéia, teve a participação e o apoio do “Estado-cristão”. Basta um rápido olhar sobre a História que se seguiu: As Cruzadas, o Patriarcado, a Inquisição, o genocídio dos povos originários das Américas, as guerras mundiais, as centenas de intervenções militares dos Estados Unidos contra povos e países, planeta afora e que continuam hoje na Somália, Yemen e da Rússia contra a Ucrânia. Todos têm à frente um chefe de “Estado-cristão” ao estilo de Constantino.
O Deus Escondido nas classes oprimidas é socialista e ambicioso. O seu projeto não se contenta com as migalhas jogadas ao povo, mesmo cabendo no menor buraquinho da face da terra, a amplidão do universo não o limita, engrandecendo a esperança, um Bem Viver igual para toda a humanidade.
No caso das Américas, chama a atenção o fato de que a maioria dos povos originários, atingidos pelo genocídio, cometido pelos “Estados-cristãos”, vivia um modelo de fraternidade, semelhante ao que Jesus e os primeiros cristãos viviam e pregavam. Um convite aos chegantes, para voltarem a ser o que um dia foram. Suas liturgias, festas, vivências e valores solidários foram incentivados pelo Concílio de Jerusalém e até ampliados pelo Concílio Vaticano II. Deveriam presidir hoje o ser cristão, da liturgia à economia aqui, na Amazônia, e no mundo todo. Mas o que se vê de fato é a preocupação pelas armas “sônicas e supersônicas”, a manutenção de estruturas e de números: grandes obras, templos, educandários, paramentos, cálices de ouro, mantidos à custa de esmolas e “dízimos” de funcionários do “Estado-Cristão”. Tudo transformado em dinheiro, cinza de privilegiados ou convergindo para as “basílicas” modernas dos supermercados, shoppings. E o tema dos discursos nos púlpitos dos Congressos, como nas missas e cultos, inclui sempre os objetivos do “Estado-cristão”: mercado, leis e mais leis, concorrência pelo número de adeptos, pelo templo mais lindo, pelo santuário mais suntuoso. Como o imperador Constantino o desejou para calar a voz do Deus revolucionário, “Escondido” no meio do povo.
Recordo-me que, há 60 anos, decidi empenhar a minha vida pela causa indígena. À volta me questionavam: “Pra quê? É uma causa perdida! Já são menos de 100 mil, revela levantamento do antropólogo, Darcy Ribeiro”. O chão de onde escrevo estas linhas, 50 anos atrás, pertencia ao povo Kiña ou Waimiri-Atroari, na época havia em torno de 3.000 pessoas. Do dia para a noite o “Estado-Cristão” invadiu o território desse povo, como se fosse um “vazio demográfico” e em uma década os Kiña foram reduzidos a 332 pessoas. Semelhante foi a História de mais de mil povos nestas Américas a partir do ano de 1500; muitos desapareceram por completo.
Entretanto, daqueles que conseguiram sobreviver, mesmo reduzidos a apenas um “resto de Noé”, não se ousa hoje falar em “causa perdida”. Estão aí, Brasil afora, beirando 1 milhão e com a História na mão. O segmento da sociedade brasileira, mais unido, em torno de seus direitos e apontando soluções reais para os problemas que mais preocupam e afligem à humanidade. Isto porque começaram a acreditar no seu próprio caminho, animados por uma leva de jovens da sociedade nacional que renunciando às benesses que o Estado lhes oferecia, livres, se encarnarem na realidade desses povos, nos seus últimos esconderijos, animando-os a retomarem a sua História. Fomentaram assembleias para se organizarem na luta pelo direito à sua terra. Os animaram a reviver a sua cultura e autonomia. Foi o Deus Escondido, atiçando as “Sarças”, “lavando os pés”, sem temor, sem limites legais, sem paredes, sem salário, ‘movendo-se, vivendo e sendo no “Deus Escondido”, sem se sentirem limitados pela amplidão do mundo, na prática da fraternidade. Foi este mutirão de pessoas e de entidades sob o protagonismo indígena que mudou o destino sombrio dos povos indígenas.
Sonho que esta “Sarça” continue acesa e um dia vire multidão, uma geração que construa o “navio do Noé”: um modelo de vida que afirmará a ciência congênita, Escondida no meio dos povos e das pessoas. Modelo que substitua metralhadoras e bombas pelos aventais do serviço solidário. Uma geração que ilumine os povos e colha no meio deles as sementes do Bem Viver para todos.
O Estado jamais foi, e jamais será, um estado laico que promoverá o bem-estar da humanidade. O Deus da História será sempre, o Deus Escondido no meio do povo e libertador das consciências.
Com a minha esposa e 4 filhos pequenos, tive a oportunidade de viver no regime de vida do povo Kiña ou Waimiri-Atroarwi, na Aldeia Yawará, Sul de Roraima. Uma vivência segura, alegre e feliz. Inesquecível! O Estado Brasileiro nos expulsou porque a nossa simples presença ali mostrou ao seu governo, os descaminhos da política indigenista oficial e o roubo dos recursos naturais em curso na região, bens da humanidade, bens entregues pelo governo a uma elite gananciosa. E aqui, o mesmo Estado nos concedeu o ‘título de propriedade’ de um pedaço de chão que roubou do povo Kiña. Não me sinto feliz, como “proprietário” de algo que não é meu.
Por enquanto, sonho que um dia este nosso município tenha duas línguas oficiais. O português e o Kiñayara, a língua do povo que viveu feliz nesta linda Terra das Cachoeiras até 1968, quando o Regime Militar a invadiu, como se fosse um “vazio demográfico”. O conhecimento da língua desse povo, ensinada por seus docentes, a nós, a nossos filhos e aos munícipes, nos introduzirá num paradigma de vida que nos trará segurança, alegria e Bem Viver. E sonho que o chão sob os nossos pés voltará ser posse, administrada por nós, talvez até enriquecida pelo que de valor trazemos em nossa bagagem, mas seja coordenada sob o regime do povo Kiña.
Esta vivência nova, revolucionária, garantirá um futuro feliz para as gerações vindouras de ambos. Onde a vida nasce e renasce esperançosa, seguindo a “sarça ardente” e não as leis do “não se deve” “não se pode” que descem da montanha ou das cabeças poluídas pelo dinheiro de Congressos. É a “Sarça ardente” que resume todas as leis e põe o povo a caminho, com a sua história na mão. Avivando-a com o relato das surpresas e proezas e embelezando-a com contos e cantos, lendas e fábulas, celebrações e festas, criando sempre caminhos novos, aumentando o tamanho, a quantidade e o colorido dos frutos, tornando as receitas culinárias variadas e as mesas sempre mais fartas para as gerações do presente e do futuro, sendo assim o paradigma do Bem Viver.
Tem Alguém Escondido lá dentro. Não discuto se é masculino ou feminino? Se é uno ou se é trino. Nunca foi visto por ninguém. Por isso, não humilho e nem condeno a quem o adora ou a quem se diz ateu. Se o “procuramos às apalpadelas” (At. 17.28), velhos e jovens, todos e todas viveremos felizes. E no final de nossas vidas, realizados, possamos, como a mãe, quando a criancinha ao dar seus primeiros passinhos se esconde dela, a fica procurando, procurando por aí... de repente, radiante, explode: “Achei!”
Casa da Cultura do Urubuí, 06 e 07 de julho de 2022,
Egydio Schwade
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