UM MUTIRÃO DE ENTIDADES PRÓ-ÍNDIO - Egydio Schwade
O CIMI define quatro prioridades
No início dos anos de 1970, a situação do índio brasileiro, era de total dependência do Estado e de suas decisões. Suas chefias estavam desmoralizadas, suas comunidades humilhadas pela pobreza e sua organização inexistente. O Estado impunha grandes projetos sobre áreas indígenas e justificava sua política nefasta, como benefício aos índios. Assim, por exemplo, em 1972, funcionários da FUNAI na área Waimiri-Atroari, se empenhavam em “convencer o cacique Maruaga, chefe geral das 15 aldeias, de que a estrada BR-174 traria benefícios para o grupo”. (Correio da Manhã - RJ. 1-8-72). E o Pres. da FUNAI, justificava a passagem da rodovia BR-80 pelo Parque Nacional do Xingú mentindo à nação: “a estrada não vai criar problemas para os índios”. E questionado pela opinião pública nacional e internacional sobre essa prática, o Governo afirmava o determinismo de seus projetos: “O Parque Nacional do Xingu não pode impedir o progresso do país”. (Pres. da FUNAI em Visão 25-4-71). E noutra oportunidade: “os índios não podem deter o desenvolvimento”. (Pres. da FUNAI, em O Est. de S.Paulo, 26-10-71).
Em 1967, o Governo fez um ensaio de mudança da sua política indigenista, quando extinguiu o Serviço de Proteção aos Índios e anunciou que criaria um novo órgão para condução da política indigenista. Uma euforia de esperança perpassou, então, toda a sociedade consciente da nação. Após um período extremamente nefasto da política indigenista do Estado, especialmente naquela década de 1960-1970, o Governo anunciou, no final do ano de 1967, uma mudança radical. Em substituição ao Serviço de Proteção aos Índios-SPI criou a Fundação Nacional do Índio - FUNAI. Organizou um novo quadro de funcionários, voltando, como no início do SPI, os militares a tomarem conta da prática indigenista.
Mas a ação dos indigenistas militares, formados pela ditadura, de acordo com os ditames do Pentágono, pouco teve a ver com os ideais dos militares nacionalistas nos inícios do SPI. Com pouco mais de um ano de presença nos postos indígenas, esses militares indigenistas que começaram a administrar as áreas indígenas com muita arrogância, fracassaram. Voltaram aos quartéis, deixando em seus lugares funcionários civis, com frequência os seus motoristas, pessoas sem preparo algum para a difícil tarefa da direção dos postos indígenas. Limitaram-se, então, à direção nacional do órgão e de algumas delegacias regionais. A prática indigenista oficial de todo o período militar, decepcionou as esperanças da sociedade civil consciente. Na direção do órgão instalou-se uma tradição de prepotência e subserviência que, com poucas exceções, continua até hoje.
Em 1973, por iniciativa e pressão de um grupo de jovens candidatos à direção dos postos, a FUNAI começou a dar um curso de preparação de indigenistas. A prática foi bem sucedida, mas logo abandonada. O abandono se deveu ao fato de ter formado pessoas mais conscientes, que, uma vez nas bases, tentaram transformar a prática do órgão. Poucos indigenistas formados nesses cursos conseguiram driblar os percalços colocados em seu caminho pelos dirigentes da FUNAI. Quase todos acabaram demitidos ou se afastaram voluntariamente do órgão, por verem suas esperanças frustradas. Bem ilustrativo foi o depoimento de Antônio Cotrim Neto, chefe de posto, junto aos Parakanã no Pará. O abandono a que a FUNAI relegou os índios e seus responsáveis diretos, fez o indigenista lavrar um veemente protesto no momento de pedir a sua demissão, do qual consta este desabafo. “Não pretendo contribuir para o enriquecimento de grupos econômicos à custa da extinção das culturas primitivas. (...) A política indigenista desenvolvida, aceita a tese de que as culturas primitivas são quistos ao desenvolvimento nacional. Já estou cansado de ser coveiro de índio. Transformei-me em administrador de cemitérios indígenas”.(O Est. de S.P. 21-4-73).
Do lado da Igreja, aconteceu, em Roma, no início dos anos de 1960, o Concílio Vaticano II, que abriu espaço para que novas luzes se projetassem sobre a ação missionária. “Com alegria e respeito, busquem os missionários colher as sementes do Verbo ocultas nos povos”(Doc. Ad Gentes 11) - rezava o documento sobre a Ação Missionária. Oferecia-se aos missionários uma tarefa totalmente diferente daquela que estava sendo executada. A doutrinação, a europeização, a difusão do “progresso”, que conduzia o índio à integração na sociedade nacional, deviam ser substituídas pela coleta de valores na sociedade indígena. Estes valores se tornariam os pedagogos do missionário e da própria Igreja Católica. O Concílio sugeria ainda uma encarnação no mundo do índio, que assumisse a sua vida e a sua situação. Abria-se um conflito entre a missão tradicional (com seus internatos, doutrinação e europeização) e a nova postura evangelizadora que devia ser estruturada a partir da má notícia, presente em toda a História e realidade indígenas de 1500 até então: A perda da terra, a perda da cultura e a perda do seu destino como povo autônomo.
É neste contexto conciliar que surge, pressionado pelas bases missionárias da Igreja Católica, uma esperançosa reação. Um encontro sobre Pastoral Indígena, em Morumbi-SP, de 18 a 22 de fevereiro de 1968. Na primeira linha de ação emanada daquele encontro, consta que o evangelizador deve “como exigência fundamental, conhecer, respeitar e prestigiar a cultura de cada grupo indígena e procurar aculturar-se a ele”. A sua ação global deve visar antes de mais nada a “promoção humana”.
Desde os anos 50, solitárias e humildes, as Irmãzinhas de Jesus junto ao dizimado povo Tapirapé, desenvolviam um trabalho de evangelização revolucionário, nunca visto, desde 1500. Sem doutrinar, sem catequizar as irmãzinhas apenas marcavam uma presença amiga, sugerindo silenciosamente uma nova linha de ação missionária à Igreja.
Por sua vez, no ambiente leigo da Igreja Católica, fundou-se em fevereiro de 1969 a Operação Anchieta - OPAN, uma organização de agentes indigenistas leigos que também se propôs um serviço e postura novos junto às comunidades indígenas, com uma visão, “nacional e até internacional” da questão, superando fronteiras e circunscrições eclesiásticas. Este grupo de leigos começou a revolucionar a prática indigenista dentro das missões da Igreja. A prática indigenista, apontada pelo Concílio Vaticano II e pelos encontros de Morumbi e outros que se seguiram, começou a se tornar realidade, radical e animadora, no caminho daqueles jovens.
E ao empenho dos leigos da OPAN, seguiram-se mudanças profundas, também em diversas missões de religiosos. No intuito de levar esta ânsia de mudança a todas as missões católicas do país, criou-se em 1972 o Conselho Indigenista Missionário-CIMI, como instrumento oficioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, para conduzir as transformações com muita liberdade, ecumenicamente, não apenas com relação à cultura indígena, mas também com relação a um trabalho missionário em conjunto com outras confissões missionárias.
Criado na esperança de mudar as perspectivas sombrias da pastoral indigenista da Igreja no Brasil, o CIMI daquele primeiro momento, contudo, não passava de um Conselho de experts, todos homens muito ocupados e inteligentes cientistas da questão indígena. Quase todos com livros publicados sobre o assunto. Todos com grande experiência de base, mas todos sem vontade de abandonar a sua tarefa para se dedicarem à nova tarefa que se propunha.
Assim, no final do primeiro ano de existência do CIMI, parecia que pouco ou nada mudaria na política indigenista da Igreja Católica, apesar do novo instrumento criado para isto. Diante da insatisfação geral das bases, por sugestão do Secretário Executivo da CNBB, D.Ivo Lorscheiter, foi criado no dia 30 de junho de 1973, o Secretariado Executivo do CIMI, que desencadeou a mudança. Mudança que é fruto de um amplo mutirão, costurado por uma pequena equipe, atualizada sobre a realidade do índio brasileiro daquele momento histórico, e, que se movimentava pelo País, na busca de discutir a situação indígena sem preconceitos religiosos, políticos, partidários, classistas.... A discussão se alimentava pela presença constante da realidade local, regional, nacional e internacional, no que foram muito importantes jornalistas espalhados por todas as capitais do país que começaram a acreditar nesta ação nova e diferente. Mas foram principalmente importantes nesta discussão as atitudes e princípios de vida pessoais e coletivos, trazidos pela prática diária das pessoas que moravam nas aldeias: as irmãzinhas de Jesus junto aos Tapirapé(Araguaia-MT) e da OPAN nas aldeias Sagarana(RO), Paresi(MT), Tatuí(MT), Rikbaktsa, Nambikuara e Myky(Juruena-MT) Maronawa(Purus-AC) e da Ir. Sílvia na aldeia Funil (Xerente-TO)... e muitas outras. A ação, a nível nacional, era costurada pela equipe do Secretariado Executivo, auxiliada, principalmente, pela equipe de pastoral da Diocese de Goiás Velho e do seu Bispo, D.Tomás Balduíno. Reunia-se com grande agilidade em qualquer parte do País, com pessoas de diversas linhas eclesiais e ideológicas. Tod@s eram animad@s a manifestar a sua opinião.
Esse grupo não se formou do dia para a noite. Basicamente pertencia a algumas Prelazias e Dioceses que acreditavam na nova perspectiva missionária da Igreja e à OPAN, onde recebera uma formação intensiva e ecumênica. Tinha também os seus apoios e os seus tetos, onde a mudança era discutida informalmente, anos a fio, processando-se como resultado de uma prática coerente.
Um desses locais de constantes discussões da política indigenista, desde 1970, foi a casa de trânsito da Opan, em Cuiabá-MT. Até 1970, os leigos da OPAN e da OED(Serviço de Voluntários para o Desenvolvimento da Áustria), que se juntavam no Brasil às fileiras da OPAN, tinham como ponto de apoio na capital daquele Estado, o depósito da Igreja do Rosário. Era o lugar significativamente real e simbólico do leigo e do índio, dentro da Igreja missionária dos 500 anos de colonização. Com o apoio financeiro da Katholische Jungschar Österreichs de Viena, compraram em 1970 uma casa, a Casa de Trânsito da OPAN. Essa casa se tornou, desde então, até o final dos anos 70, um dos pontos mais “quentes” das discussões, atraindo espontaneamente índios, missionários (leigos, padres e bispos), jornalistas, professores de diversos níveis, além de políticos, advogados, entidades alternativas dos mais diversos objetivos. Todos se animaram ali, a se organizarem, a se juntarem ao mutirão que acabou sacudindo a mentalidade indigenista e indígena reinante desde 1500. Foi ali que, pela primeira vez, o índio pôde discutir, com inteira reciprocidade, a sua situação. Outros locais semelhantes foram a Casa Paroquial dos Padres Claretianos em Goiânia e o apartamento 203 SQN 403 do CIMI em Brasília.
Poucas vezes se discutia a situação financeira do grupo. O seu futuro estava embutido na causa que articulava. E este futuro apontava para “baixo”, isto é, no rumo da situação atual do índio. Formava-se para a solidariedade e para a simplicidade, para o engajamento 24 horas por dia na luta por um espaço para o índio, para a conquista de um espaço mais livre e novo para todos dentro da Igreja. Os encontros e reencontros, as discussões e a mudança de fato, no dia-a-dia, ocorriam de forma informal, alegres e animados, nas aldeias e nas cidades.
Ninguém sentia preocupação pela segurança de propriedades pessoais ou de sua entidade. Tanto assim, que em 1970 a OPAN deixou que o Bispo da Prelazia de Diamantino assinasse como proprietária jurídica a compra da sua Casa de Trânsito em Cuiabá, conseguida através de recursos buscados pela Operação. A confiança cega estendia-se às entidades afins, como no caso à direção da Prelazia de Diamantino, embora, a longo prazo, isso custasse caro à caminhada da OPAN e do CIMI...
Na prática, a simplicidade foi sendo vivida, perpassando o dia a dia. As vestimentas começaram a encurtar, igualando-se mais e mais aos trajes da aldeia, até o ponto de caírem totalmente, em alguns casos de povos recém-contatados, substituídos pelos ornamentos usados pela comunidade indígena.
Ninguém perdia muito tempo com a segurança financeira. Todos sabiam que a quantia de dinheiro que o órgão recebia era pequena e o administrador da sede do CIMI em Brasília, Ivo Schroeder da OPAN, administrava esse recurso com muita eficiência, segurança e tranquilidade para todos. Não me recordo de uma só reclamação a respeito dessa administração em todo o tempo em que fui Secretário Executivo do CIMI. A confiança mútua entre base e diretoria do CIMI e as entidades de apoio financeiro, no que se refere aos recursos que então recebíamos, repercutiu muito e acredito que até hoje favorece as finanças do órgão.
Nas constantes viagens pelo interior do País, não se almoçava em restaurantes, porque a gente sempre era acolhido a qualquer hora do dia ou de noite pelas paróquias ou comunidades religiosas de padres, irmãs e inúmeras famílias do interior e das cidades.
Muitos conheceram a malinha do Pe. Iasi, sj., que continha sempre toda a sua propriedade. Ele foi radical até o exagero. Chegou a destruir relatórios seus importantes, simplesmente porque eles não cabiam mais naquela maletinha. Isto ocorreu, por exemplo, com o seu relatório sobre a situação indígena do Alto Solimões, elaborado por volta de 1975, onde traçava um paralelo muito perspicaz entre as atitudes pastorais da Prelazia de São Paulo de Olivença e a seita do Irmão José da Cruz.
A preocupação dos encontros daquele grupo, integrado por religiosos e leigos do CIMI, da OPAN, OED(Oesterreichischer Entwicklungsdienst) e TVC (Tecnici Voluntari Christiani), era o futuro novo e melhor do índio. Com relação a este discutia-se o que em 1975, a 1a. Assembléia Nacional do CIMI sintetizou em suas linhas de ação: a preocupação pela segurança da terra indígena; a preservação de sua cultura; e as perspectivas de sua autodeterminação. Mas também, e principalmente, uma atitude pessoal que pudesse, como amigos, companheiros e irmãos perseguidos, iguais a ele, levar o militante, ou missionário mais perto do índio. Falava-se em “encarnação”, em “ser aceito como um deles” na expressão da 1a. Assembléia Nacional do CIMI.
Talvez tenhamos levado as nossas convicções até o exagero, mas creio que acertamos. Pois, foi essa prática que nos deu liberdade para andar esse país de Norte a Sul, apesar da repressão da Ditadura Militar e das mesquinharias e contestações da Igreja reacionária. Poucas vezes, a Igreja acompanhou a situação do homem sofredor no interior e nas cidades, índios e não-índios, como naqueles anos.
Quando chegávamos a qualquer capital, vínhamos recheados de informações sobre a grave situação do índio brasileiro, o que, invariavelmente, atraía uma outra equipe formada de jornalistas que nos cercava com entusiasmo incontido e arriscava tudo para informar a verdade do que ocorria no interior brasileiro. Eles se encarregavam de criar as situações que acabavam trazendo à opinião pública as notícias que lhes entregávamos em primeira mão. Esses grupos de jornalistas levaram até empresas de comunicação reacionárias, a divulgar, mesmo a contragosto, a situação indígena do país.
Em todas as principais capitais, desde Porto Alegre até Manaus, formamos rodas de amigos jornalistas, intelectuais e populares que divulgavam a causa que começamos a representar e com a qual éramos profundamente identificados diante dos índios e da opinião pública. Uma Assembleia dos povos indígenas em Meruri-MT ou numa aldeia do longínquo rio Cururu, no Alto Tapajós, ou ainda, em Surumu/Roraima, assim como uma simples reunião do Conselho do CIMI, realizada em Diamantino, no Noroeste de Mato Grosso, era motivo para que jornais, como a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, pagassem passagens aéreas ou fretassem táxi aéreo, para seus jornalistas colherem as notícias de primeira mão.
Tudo isto criou uma mística de grande força e união entre os membros do CIMI, os missionários por esta causa, a simpatia dos índios e das forças vivas da nação. O apoio à nossa caminhada vinha de toda a parte. Era emocionante receber cartas, até de dentro das masmorras de São Paulo, de presos políticos, alguns declaradamente ateus, que arriscavam a vida, para nos enviarem mensagens de entusiástico apoio. E, uma vez libertos, houve quem deles se juntasse com entusiasmo à nossa luta.
Por outro lado, os indigenistas da Igreja, leigos e religiosos, começaram a ser alvos das perseguições da Ditadura Militar, dos latifundiários e da própria Igreja pré-conciliar. Mas, com seu incontestável compromisso com os povos indígenas, conquistaram força junto a estes e junto à sociedade civil. E foi esta tríplice aliança que provocou as primeiras rachaduras na ditadura militar.
26 de dezembro de 2015,
Egydio Schwade
Muito bom, parabéns
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