11.05.2014 - TENHARIM: UM POVO CONDENADO AO APARTHEID - Egydio Schwade

 “Humaitá é hoje, em pleno século 21, uma cidade onde os índios não podem pisar, sob pena de serem espancados e mortos. Não apenas por comerciantes e pecuaristas, mas até por moradores que, como eles, vivem na pobreza.”1 – Alceu Castilho

As agressões ao povo Tenharim no seu habitat ao Sul do Amazonas, já vem de longe. E a sua motivação sempre foi de ordem econômica espoliadora. Curt Nimuendaju escrevia em 1922: “Da margem do Madeira foram expulsos, pela invasão dos seringueiros, em todo o trecho entre o Lago do Antônio e Paraizo.”. E em outro trecho: “Uma guerrilha cruel e traiçoeira começou e se arrastou durante longos decênios. Nas represálias dos civilizados, às mais das vezes, estes se comportavam pior que os seus adversários selvagens. Bradou-se por medidas enérgicas; exigiu-se o extermínio da tribo, e os moradores do sertão contribuíram o mais que foi possível para este fim, fazendo fogo sobre qualquer índio, onde quer que ele se apresentasse. 

E foi desta forma, por uma guerra de 80 anos, que esses índios consolidaram a sua fama de ‘feras cruéis e indomáveis’, e se tornaram o alvo do ódio e do horror de todos seus vizinhos”.2

A abertura da linha telegráfica de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, entre os anos de 1911 e 1914 trouxe os seringalistas de Cuiabá, que iniciaram a pressão civilizada a partir do Sul pelo rio Juruena e seus afluentes. No final dos anos 50 com o início da abertura da BR-364, juntaram-se os interesses minerais, pressionando os povos indígenas a partir do alto dos rios Aripuanã, Roosevelt e Machado. No “Massacre do Paralelo 11” em 1963, contra os “Cinta Larga”, já se evidenciou o interesse mineral e a ligação dos autores do massacre, os seringalistas Antonio Junqueira e Sebastião de Arruda, com os governos locais e com a Ditadura Militar, então em gestação. O Golpe Militar aconteceu alguns meses depois do “Massacre do Paralelo 11” e elevou Hélio Palma de Arruda, irmão de Sebastiao de Arruda, , ao cargo de Presidente do INCRA.

Em meados dos anos 70 a Rodovia BR-230, Transamazônica, seguiu de Jacareacanga rumo Humaitá, violentando o território dos povos indígenas da região. “Foi quase uma extinção”, diz Aurélio Tenharim.3

Em 1977 receberam a primeira visita do CIMI, através de Doroti Alice Muller, minha futura esposa e então Coordenadora do CIMI/Amazônia Ocidental.

Em 1981, Exequias Heringer, vulgo Xará e Ana Lange, então agentes do CIMI no rio Madeira, relatam: “O grupo Paranapanema tem duas minerações de cassiterita na região: Igarapé Preto e São Francisco. Estivemos na primeira onde obtivemos informações com a equipe de engenheiros local. Lá a mineração se estabeleceu em cima da aldeia indígena (Tenharim), que teve de se transferir para uma área anexa. Não recebem qualquer tipo de assistência e se encontram num triste quadro de catapora. Outros Tenharim estão dentro da reserva a ser demarcada, mas estes declaram que não irão para dentro da reserva apesar dos insistentes convites da FUNAI. Em represália os funcionários da FUNAI transferem a responsabilidade de assistência para a mineração, que declara que os assiste, mas nada faz neste sentido. Hoje são apenas 22 índios. Daqui a dois anos acabará o minério e a Paranapanema implantará um projeto agropecuário, aproveitando a infraestrutura instalada. Enquanto isso os índios são aproveitados para serviços de limpeza, de carregamento, de caça.”4

A partir da dura experiência vivida na passagem da Transamazônica, os Tenharim começaram a crescer em consciência, retomando parte de seu território. Cresceram também em número. De pouco mais de 100 a que a Transamazônica os reduziu, já passam hoje dos 800. Nas assembleias realizadas nos últimos dois anos aparece constantemente a preocupação com as novas ameaças: a construção das hidrelétricas na região, em especial, de Tabajara no Rio Machado e outras mais no Rio Tapajós, assim como a invasão da área por madeireiros. Enfim, os interesses pelas suas riquezas naturais e a invasão da sua terra por alienígenas, também vem crescendo. 

Como consequência as ameaças, as perseguições e a crescente discriminação.

Uma das lideranças principais nesta resistência, nos últimos anos, tem sido o cacique Ivan Tenharim. Por isso, ele e seus familiares vinham sofrendo represálias e discriminações desde 2010, quando, filha e sobrinho, “foram proibidos de entrar no ônibus escolar que faz o transporte dos alunos até o distrito de Santo Antônio do Matupi onde cursam o ensino médio. Um fazendeiro da região, pai de dois alunos do Colégio Estadual Santo Antônio do Matupi, não permitiu que indígenas utilizassem o mesmo ônibus que seus filhos faziam uso”.5

“Ivan era o principal informante dos vestígios de indígenas isolados/livres e mantinha uma postura política de defesa quanto à delimitação e demarcação do território dos povos isolados”.6 Na região existem mais de 40 serrarias e já em 2011 os Tenharim participaram com agentes do IBAMA nas apreensões de madeira, máquinas, caminhões e motosserras... na Terra Indígena do povo Tenharim, sendo a partir de então perseguidos por “jagunços quando utilizam a Rodovia Transamazônica e a Rodovia do Estanho.”7 “O cacique colaborou, um mês antes de sua morte, com a Polícia Federal e o IBAMA em uma operação na Gleba B da TI Marmelos. Fazendas estavam extraindo ilegalmente madeira. E o cacique foi visto pelos madeireiros.”8

Foi a partir das ações do Ibama e Polícia Federal, com a colaboração de lideranças indígenas em 2011, que começaram as ameaças às Lideranças Tenharim e Jiahui. Todos estão convencidos de que “a morte do cacique Ivan Tenharim não foi acidente. Não houve perícia”9 com o que concordou o coordenador da Funai na região, Ivã Bocchini que, por isso, foi exonerado do cargo, colocando em suspeição os dirigentes do órgão. 

Algumas semanas após a morte do cacique Ivan, desapareceram três cidadãos entre Humaitá e o Km 180 da Transamazônica. A suspeita, sem prova alguma, caiu logo sobre os “índios Tenharim no plural e se espalhou como um rastilho pela região”.10

Principalmente, a partir de 2006 os Tenharim e Jiahui, vem pressionando o Governo por reparação ou indenização pelos danos e prejuízos sofridos, com a passagem da Rodovia BR-230, Transamazônica por suas terras, obra da Ditadura Militar: cemitérios dessacralizados e soterrados, fauna e flora destruídos, introdução de garimpeiros, fazendeiros e madeireiros. O Governo que ouviu e atendeu outros setores da sociedade sobre o assunto, prejuízos da Ditadura Militar, se mostrou mudo diante das reivindicações indígenas. Foi isto que causou a iniciativa dos Tenharim de organizarem um rodízio de pedágio-compensação, que favorecesse equitativamente os 36 grupos em que foram divididos os Tenharim e Jiahui.  sabemos que o pedágio, onde quer que se pratique, sempre é anti-popular. Assim, o pedágio-compensação, se tornou um dos principais argumentos que motivaram para o ódio que se desencadeou contra os índios. 

E eis que em pleno século 21, nas barbas de governos municipais, estadual e de um Governo Federal popular; apesar de um ensino primário, secundário e universitário estruturados em toda a região; com igrejas cristãs em cada rua das cidades, estoura um ódio de morte e uma guerra de destruição contra os bens móveis e imóveis dos mais pobres entre os pobres da região. Um apartheid, agressivo e inimaginável contra os índios se espalhou. Um autêntico fracasso de humanidade.

Entraram em cena todas as forças de segurança públicas: Exército e polícias. Instauraram-se inquéritos, mas apesar das fartas linhas de investigação, todas as que poderiam levar a caminhos favoráveis aos índios foram desconsideradas. Por isso, nenhuma justiça para os povos indígenas da região à vista. Nenhum relatório conclusivo que vá de encontro à justiça. Ao contrário, os inquéritos policiais acabam levando a um e mesmo beco sem saída justa, porque a “justiça” já foi previamente programada para a condenação de inocentes, dos índios no plural, como “bodes expiatórios”. Tudo para proteger os interesses em jogo: madeireiros, mineradores, fazendeiros e agronegociantes.

Como se pode ver é preciso que se conheça a fundo a história desse povo sofrido, que se faça uma investigação da ação nefasta desencadeada pela Ditadura Militar com a construção da Rodovia Transamazônica e a instalação de seus projetos de interesse saqueador. Que escolas e igrejas se unam para dar um fim a esses instrumentos de morte e se coloquem em pelourinhos os nomes das empresas e dos causadores originários e mandantes da guerra contra os povos indígenas no Sul do Amazonas.

Soluções justas começariam com estudos sérios sobre a maneira como foi construída a Br-230, Transamazônica, de Jacareacanga à Humaitá, escutando as vítimas, ex-atores e ex-espectadores do empreendimento: índios, picadeiros, funcionários da FUNAI, militares, padres e pastores sobreviventes. Em seguida um levantamento de como foram concedidos os alvarás de mineração e os títulos definitivos dos latifúndios da região. As ilegalidades praticadas pelas empresas madeireiras. Tarefas importantes a serem incentivadas por professores das universidades atuantes na região, mediante teses de conclusão dos estudos de seus alunos.

Importantes passos já foram dados pelo Ministério Público Federal no Amazonas-MPF/AM através do Dr. Júlio José de Araújo Filho processando o administrador da página Portal Apuí no Facebook, Ivani Valentim da Silva, pela veiculação de notícias com  conteúdo discriminatório e incitação ao ódio contra os povos indígenas da etnia Tenharim.11 Outra medida importante do mesmo MPF/AM foi ingressar “com ação civil pública, com pedido de liminar, na Justiça Federal para declarar a responsabilidade da União e da Fundação Nacional do Índio (Funai) por violações de direitos humanos dos povos indígenas Tenharim e Jiahui, em decorrência de danos permanentes da construção da rodovia Transamazônica (BR-230) em seus territórios. Na ação, o MPF/AM pede a condenação da União e da Funai à reparação dos danos com várias medidas, entre elas, o pagamento de indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 20 milhões.”12

A questão Tenharim é uma questão de lesa humanidade que deve merecer providências não só do Ministério Público Federal, mas uma atenção especial da Comissão Nacional da Verdade, da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, das Igrejas e das instituições educacionais. É uma questão de justiça. E concluindo com D. Francisco Merkel, bispo de Humaitá: “Um clima de injustiça não gera paz”.13

Casa da Cultura do Urubuí, Presidente Figueiredo, 11 de maio de 2014,

Egydio Schwade

1Publica – Castilho, Alceu – A Batalha de Humaitá – 13 de janeiro de 2014.

2 Nimuendajú, Curt – Textos Indigenistas – São Paulo, 1982. pg. 56-57.

3 Publica – Castilho, Alceu – Matar um índio para pegar uma Índia” – 14 de janeiro de 2014.

4 Heringer, Exequias, Lange, Ana – Relatório – agosto de 1981.

5 Conselho Indigenista Missionário- Rondônia- CIMI/RO. Conflito no sul do Amazonas e os Povos Indígenas na Transamazônica” – 25 de janeiro de 2014.

6 Idem.

7 Idem.

8 Monteiro, Telma –Um Depoimento Sincero sobre os Tenharim e Jiahui – 12 de fevereiro de 2014.

9 Idem.

10 Publica – Castilho, Alceu – A Batalha de Humaitá – 13 de janeiro de 2014.

11 Siqueira, Chico – MPF pede indenização de R$ 20 mi para índios Tenharim – 16 de janeiro de 2014.

12 Publica – Castilho, Alceu – A Batalha de Humaitá – 13 de janeiro de 2014.

13 Idem.

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