Carta de Doroti ao Amigo Beto

Vida e História de Doroti Schwade: Texto 10

Rio branco, 29 novembro de 1977

Olá Beto,

Há muito que queria me comunicar contigo. Mesmo antes de te conhecer pessoalmente. Sei lá, uma vontade de agradecer por tu existires. Agradecer a esperança que tu representas. A única vantagem que um sistema repressivo pode trazer, é justamente tornar pleno aquele compromisso com a humanidade que torna a pessoa sábia e santa. Sei lá, eu só queria dizer que sou feliz em te conhecer. Tenho muitas destas oportunidades e acho que isto é uma graça. Pelo simples fato de ter optado pelo povo oprimido acabei tendo oportunidade de conhecer gente como Pedro Casaldáliga, Pe. Afonso De Caro e tantos outros. Com todos tenho aprendido muito e renovado grandemente minha esperança na Utopia. Quanto mais mergulho na vida aniquilada do povo, principalmente o amazônida e especialmente o índio, tanto mais acredito na fraternidade e na “loucura” do Evangelho.

É verdade que às vezes tenho vontade de me revoltar e me revolto. Tenho vontade de gritar contra estas mil formas de injustiça que aniquila a tantos. O que mais me dói é ver que este povo não é “povo”. Tiraram-lhe o direito de ser. Tornaram-no “lobo” de seu irmão. Quando vejo este seringueiro, castanheiro, sorveiro sendo instrumento de desagregação da vida comunitária do índio, este “civilizado” que é ocidental apenas pela ideologia (que apenas pela ideologia faz parte do mundo ocidental). Porque por estes rios o povo vive à margem da margem de qualquer benefício tecnológico, científico e cultural. A própria cultura que ele trouxe do Nordeste foi liquidada pela solidão e desespero a que foi atirado. Só restou o preconceito contra o índio. O índio lhe pareceu uma fera a mais contra quem tinha que lutar. E a Igreja neste processo todo, em vez de ser “Bom Pastor” que busca a ovelha em perigo e a junta às demais, serviu mais de “vaqueiro” que de vez em quando “marca” o rebanho para o patrão. Marca com o sacramento e domestica com os freios “morais”. (desobriga).

Desculpe se estou sendo severa demais no julgamento que faço da igreja da Amazônia. Talvez tenha sido de fato severa. Houve muitos padres e religiosos que se sacrificaram levando remédio para o homem daqui. Tentando sarar-lhe as feridas. Sim, houve muitos desses. Pena que eles deixavam os “lobos” impunes e soltos. Não identificavam e nem alertavam as “ovelhas” sobre os “lobos” cada vez mais vorazes.

Felizmente as coisas estão mudando pela própria força da História. Talvez pelo fracasso, pela falência histórica de nossa Pastoral nesta região. Não sei. Muitas igrejas estão tentando modificar esta pastoral, outros resistem. Acre e Purus tem sido meu asilo e lugar de reabastecimento. Também por aí a gente encontra pessoas que mesmo isoladas tentam a todo o custo sacudir suas prelazias do marasmo da conivência e/ou omissão.

Gostaria de saber transmitir o que eu vi e senti por aí, principalmente o que vivenciei na maloca de índios Jamamadi. Foi como se eu tivesse sido marcada a brasa e um mundo de perguntas, angustias, perplexidade e revolta me tomaram o coração e continuam ardendo. Não consegui compreender todo o mistério da situação. Captei, sim, a tensão histórica de um povo e sofri com eles esta tensão. Tive a impressão que capitalizei em alguns dias todo o sofrimento do povo índio que passou, passa e passará por situações semelhantes. Beto, se tu puderes me ajudar a refletir a respeito do que vou tentar comunicar aqui eu ficaria grata. Não importa que demore. Se não puderes também não importa, mas senti necessidade de te transmitir o que vi. Senti necessidade de tentar te comunicar a experiência que vivi.

Estava fazendo levantamento dos grupos indígenas na região do Médio Rio Purus. Um padre se ofereceu para ir comigo, pois achava que seria muito “perigoso” eu ir sozinha.

Doroti.


Obs.: Esta carta encaminhava um relotório que será postado em breve, loque que os rascunhos manuscritos de Doro tiverem sido transcrito.

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