Violência Contra o povo Kiña

2000 Waimiri-Atroari Desaparecidos Durante a Ditadura Militar – Texto 2

Quando chegamos à aldeia Yawará dos índios Kiña ou Waimiri-Atroari / Sul de Roraima, no dia 4 de setembro de 1985, a casa destinada a nós professores, estava ocupada pelo chefe de posto da FUNAI, por isso, fomos encaminhados para uma casa velha que servia de depósito para material descartado. Mas era uma peça histórica importante. Foi a primeira casa do posto, construída por volta de 1975, quando a picada da estrada BR-174 se aproximava daquela região. Testemunha da ocupação bélica do território índio. Contamos 18 furos nas paredes externas, através dos quais se podiam apontar armas de diversos calibres em todas as direções. E a casa que servia de almoxarifado da FUNAI, tinha as mesmas características. Tratava-se de verdadeiras trincheiras.
Neste ambiente desencadeamos o processo de alfabetização em Kiñayara, língua do povo Waimiri-Atroari ou Kiña, como se autodenominam. Sem conhecimento da língua, eles iniciaram a sua comunicação conosco através do desenho, que dominavam maravilhosamente. E para não provocar susceptibilidades da FUNAI as tarefas de aula eram feitas na aldeia a 500 metros da escola, fora do nosso controle. Desenhos, letras e frases elaboradas diariamente em casa eram utilizados no dia seguinte em aula como pontos de partida para discussões e esclarecimentos.
No processo assim desencadeado surgiram dos desenhos as letras, destas palavras, das palavras as frases e, finalmente, os textos: lendas, estórias e a História do povo. O desenho permaneceu presente durante todo o processo dando garantia da apreensão dos conhecimentos partilhados e da veracidade do que foram revelando do seu mundo: a fartura da natureza com suas plantas, animais, peixes, a sua vivência cultural, com enfeites, danças e cantos. As lendas, a história passada e presente dos membros da aldeia, dos pais e parentes mortos e do povo Kiña. A produção dos textos provocava, invariavelmente, longas discussões sobre a forma e o conteúdo das mensagens. Eram como buracos de fechaduras acessando às lendas, aos dramas e às tragédias vividos no cotidiano. Falam de acidentes geográficos, da natureza e das pessoas. Falam dos seus mortos, de experiências vividas no interior da floresta. De malocas, ou aldeias varridas do mapa pela violência dos kamña (os civilizados).
A região em foco era terra habitada. Por toda a parte morava gente. Gente que tinha o seu projeto e programa de vida bem organizado, dentro de uma geografia onde eles eram os sábios. Tinham caminhos organizados por todo esse território. Tinham uma economia que satisfazia as necessidades e o bem-estar da população. Conheciam a floresta. Os Kiñá conhecem o seu território palmo a palmo. Cada rio e igarapé, cada acidente geográfico, cada planta, ave, inseto, cada bicho tem seu nome em kiñayara. E tudo tem o seu significado no universo do povo.
Alternavam as suas aldeias para a caça e a coleta, estabelecendo-as nas nascentes dos rios no período das chuvas e na margem dos rios para a coleta de ovos de tracajás, de tartarugas e da pesca no período da seca. Os rios Negro (AWA), Uatumã, Abonari, Urubu e Anebá são citados nessa migração periódica, como território de ocupação permanente pelos Kiña.
Varadouros
subiam ao longo dos igarapés e ligavam com outros igarapés e outros rios. As cabeceiras eram transpostas por caminhos que conduziam para outras bacias. E o domínio das mais recônditas e distantes aldeias Kiña interligava com outros povos de língua Karib através de varadouros de mais de 1.000 quilômetros, penetrando Roraima, Pará, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A organização das aldeias ou malocas não permitia o isolamento das pessoas. Meios de comunicação acessíveis a toda a população, como a canoa, o varadouro e o trocano resolviam os problemas de intercambio de mensagens e visitas para a organização de festas e de mutirões. Alimentação e abrigo ao longo dos caminhos eram providos pelas “florestas de alimentos” de antigas aldeias.
Sem um contato, sem um aviso prévio, do dia para a noite, apareceram enormes máquinas que começaram a destruir o precioso patrimônio do povo Kiña. Gente cortando sem respeito os seus caminhos. Gente derrubando a floresta e abrindo crateras, inundando grandes extensões da floresta, fazendo sumir igarapés e rios e se apossando do território que desde tempos imemoriais consideravam seu.
“Os velhos achavam que kamña colocaria toda a nossa floresta de raízes para cima”, diziam-nos os sobreviventes.
Casa da Cultura do Urubuí, 13 março de 2011
Egydio Schwade

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