Agricultura e Sociobiodiversidade Amazônica

Quando discutimos “produção familiar agrícola no Estado do Amazonas” é salutar recordar a experiência humana já vivida nesta parte do planeta antes da sujeição ao modelo de organização política estatal.
A sobrevivência da humanidade está hoje ameaçada pela violência física e cultural que a terra sofre e pela depredação dos recursos alimentícios originários ou próprios a cada região do planeta. Todos os viventes do planeta dependem de uma mudança do paradigma político e do conceito de economia dos Estados Nacionais e, principalmente, do reconhecimento de economias distintas da “crematística” praticada por esses Estados.
Muitos povos, comunidades, organizações e lideranças, vivem hoje preocupados atrás de financiamentos e de produtos de mercado para sustentar necessidades artificiais e ficções criadas ao longo da História humana. E nesta ânsia se esquecem da alimentação e da saúde das pessoas e da vida em geral, esquecem-se da preservação da natureza, da cultura e da economia da reciprocidade, fundamentos da abundância, da autonomia e do bem-viver.
Quando o primeiro bando de espanhóis sob o comando de Orellana desceu o rio Amazonas em 1540, mais de 500 gerações já haviam vivido uma consciente adaptação ao ambiente desta terra. A sua vida se orientava, sabiamente, na perspectiva de um futuro ilimitado e comum a toda a vida na terra: humana, animal e vegetal. A natureza não era entendida apenas como o espaço antropocêntrico, mas como espaço comum de todos os viventes, todos igualmente importantes. Não lhes ocorria sentirem-se donos absolutos de tudo a ponto de poderem a seu bel-prazer, capricho ou interesse, destruir ou fazer comércio com a criação.
Milhares de pequenas comunidades espalhavam-se pelo continente, se auto-sustentavam por meio de uma economia de reciprocidade. Grandes roçados cercavam as comunidades. E o que neles faltava era colhido da floresta, dos campos e das águas comunitárias. Quando em algum local a presença humana encolhia a vida animal e vegetal, as comunidades transferiam a sua sede para que a vegetação nativa e os animais se pudessem reconstituir no vigor original.
As visitas de amigos e de parentes trazia ao seio das comunidades, uma mensagem de carinho, de esperança, de bem-estar e de fartura a partir dos frutos da terra, principalmente, de novos alimentos que domesticavam ou descobriam na floresta. Assim, a mensagem das aldeias, de perto e de longe, vinha acompanhada com o gesto da mão cheia de vida, pela permuta de conhecimentos, saberes, técnicas e de espécies vegetais. Desta forma, os povos pré-colombianos se moviam garantindo espaço igual, não só para os humanos, mas para todos os seres vivos, do presente e do futuro.
As estórias que narram a origem do mundo, em todos os biomas americanos, falam do deslumbramento das pessoas diante da beleza da terra e diante da variedade de animais e vegetais. E as pessoas comportavam-se como chegantes e não como donas de tudo e se confundiam muitas vezes, propositadamente, com animais e plantas.
Para os povos indígenas a beleza, a variedade e a abundância da terra não podiam acabar jamais e deveriam ser enriquecidas pela presença humana. A Mãe-terra era vista numa amplidão e temporalidade infinitas, cujo habitat o homem procurava melhorar sempre, principalmente, pela fartura de alimentos. Assim, quem tivesse visitado a Amazônia 9.000 anos a.C. e bem depois tivesse acompanhado a expedição de Orellana em 1.540, se teria admirado muito com as melhorias introduzidas e com os alimentos novos criados, tudo sem causar impacto negativo na dinâmica do ambiente, apesar do aumento demográfico sensível que possivelmente tenha ocorrido.
Toda a cultura espiritual dos povos indígenas reflete a preocupação pela manutenção dessa variedade, beleza e abundância como patrimônio de todos. Lendas, como a do Curupira, educavam grandes e pequenos na filosofia preservacionista. As comunidades zelavam pelas fontes, pela diversidade e pela abundância de proteínas e vitaminas, animais e vegetais.
É preciso que os cidadãos retornem à terra e que os agricultores e as agricultoras voltem a acreditar em sua própria ciência e experiência e que todos abandonem a “crematística”, a economia que tem como foco principal o dinheiro. Demonstrar e provar que a experiência indígena foi e é boa não só para eles, mas para toda humanidade e que trocar e difundir gratuitamente sementes e mudas, conhecimentos e técnicas é salutar para o planeta.

Egydio Schwade
Casa da Cultura do urubuí, 15 de setembro de 2011.

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