Quando a cidade é o campo


José Aldemir de Oliveira
Professor da Universidade Federal do Amazonas

É difícil não ser contaminado, nestes tempos sombrios, pelas ações, ou tentativas 
delas, do desgoverno federal que se implantou com o golpe. É a escolha do ministro do STF, embora neste caso o escolhido esteja à altura (bem pequeno) tanto de quem escolhe como a que se destina. É a reforma do ensino médio recém sancionada que reserva papel secundário a várias áreas do conhecimento, em especial à Geografia, um saber fundamental para a compreensão dos problemas contemporâneos. É a tentativa de blindar ministros e políticos, e a mais recente, a reação do coronel freire inquilino do ministério da cultura, ao discurso do escritor Raduan Nassar. Muitas vozes não calaram e outras estão se levantando por ainda acreditarem que uma sociedade organizada é o primeiro passo na garantia da democracia e que esta não pode se resumir aos primados das maiorias eventuais, especialmente quando são construídas a partir de meios nem sempre republicanos. 

Poupo os leitores desse rosário de problemas para apresentar os resultados de uma dissertação de mestrado por mim orientada e defendida por Maurício Adu Schwade no Programa Sociedade e Cultura da UFAM. A pesquisa foi realizada na cidade de Itacoatiaranum bairro que se limita com o rio e desvenda como os moradores urbanos estabelecem estratégias de usar o campo para viver na cidade. A primeira questão discutida é o conceito de campo para a Amazônia ou para esta parte da região onde há a predominância dos rios e onde a divisão cidade e campo aparece nos contextos em que os espaços comportam práticas que estão fora do mercado, com diferentes modos de acessos aos recursos naturais que garantem a vivência. Portanto, o espaço fora da cidade melhor denominá-lo, como já o faz a população local, de interior, que aparece como lugar fornecedor de bens de consumo e de renda monetária para os moradores, o que não significa acesso ao dinheiro nem a 
produtos do mercado, mas ao que lhes garante fartura.

O bairro estudado, o Jauary, é a porta de entrada e saída de pessoas e produtos do interior para a cidade e da cidade para o interior, como pescados, frutas da colheita e do extrativismo, que nem sempre vão para as feiras e mercados, mas circulam como parte do circuito de agrado e da partilha como dimensão de uso. Não são apenas produtos, há também e principalmente riquezas imateriais que resultam das práticas e domínios da vida social que se ampliam em significados culturais e simbólicos concretizados em saberes, ofícios, artes, celebrações, formas de expressão e modos de fazer que transformam o espaço da cidade e do interior em lugares de vivência. Os valores imateriais crescem especialmente quando há o sentido de colaboração e partilha, pois a maioria desses valores não pode ser alienado dos sujeitos e transferido a terceiros.

A principal conclusão da pesquisa é que não há fronteiras claras entre interior e cidade, ambos se entrelaçam e se articulam, o que faz com que a oposição dessas categorias encontre limites para a descrição da organização do espaço na Amazônia ribeirinha. Nessa perspectiva, a compreensão das relações da população das cidades com os espaços do interior contribui para a superação do olhar que reduz a Amazônia à simples localização de recursos a serem explorados, revelando e explicitando o seu papel como espaço de uso, de produção de satisfação e de vivência com múltiplas possibilidades de realização de vida plena. Só um pesquisador com as entranhas na Amazônia como o Adu Schwade pode escrever uma dissertação com tanta leveza e profundidade.

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