O Golpe Militar na Amazônia
Para o historiador, professor e escritor José Ribamar Bessa Freire, o missionário Egydio Schwade e Doroti, a companheira dele que morreu em 2010, e com quem teve cinco filhos, são os “semeadores de alternativa para a soberania dos povos da Amazônia”. Quando se busca a história de Egydio os recortes traduzem exatamente a figura do semeador e de um homem tenaz. Aos 77 anos, recebeu, no ano passado, a tarefa de coordenar no Amazonas, o Comitê Estadual do Direito à Verdade, Memória e Justiça e, nesse espaço, procurou chamar a atenção local, nacional e internacional a uma questão esquecida: que Justiça será feita sobre os indígenas desaparecidos ou mortos durante a ditadura militar no Brasil.
Fundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Egydio elaborou, em parceria com o padre Antonio Iasi Jr., da ordem Jesuíta, as primeiras ações do Cimi, no ano de 1972, e foi o primeiro secretário-executivo da organização e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Filosofo e teólogo, esse homem franzino viveu de perto as dores e angústia do regime de exceção sem perder a coragem para denunciar de todas as formas possíveis o que ocorria principalmente com os povos indígenas da Amazônia.
Em 1996, cansado de pedir providências da Justiça contra a corrupção eleitoral no Município de Presidente Figueiredo (a 107 quilômetros de Manaus), Egydio Schwade liderou um ato de protesto e queimou, em praça pública o Título de Eleitor. A Justiça se importou com esse gesto, mas a fraude eleitoral se manteve por anos seguidos. Estimativas da época apontam para mais de 3 mil eleitores arregimentados e incluídos ilegalmente como parte do eleitorado do lugar. O tema integra o estudo realizado por Sandra Maria Cabral Miranda Barros Ramalho, sob orientação da professora Leyla Yurtsever, apresentado na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em 2008.
Quando os “anos de chumbo” silenciavam as vozes da resistência no País, o missionário Egydio produzia documentos para denunciar os massacres nas terras indígenas. Hoje, sem parar na luta iniciada nos anos de 1960, esse militante pela vida amazônica faz um relato a ACRÍTICA na série O Golpe Militar na Amazônia:
1) Há uma tentativa de ignorar o que ocorreu na Amazônia
2) Os índios são desparecidos políticos
“Em primeiro lugar, quero observar que talvez por motivo dos traumas sofridos pelas sociedades das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, durante toda a vigência da ditadura militar; as guerras no Araguaia, em Caparaó e no Vale do Ribeira; as perseguições; as torturas; as prisões; e as mortes sumárias, a maioria dos brasileiros tenta ignorar o que aconteceu no interior da Amazônia e em especial aos povos indígenas dessa região com o golpe militar e a vigência dos governos ditatoriais.
Mas, na Amazônia, as motivações e os objetivos dos acontecimentos nesse período que durou mais de duas décadas também foram diferentes daquelas do Sul, do Sudeste e do Nordeste. Os governantes das elites da região e do País deram continuidade aos mesmos projetos da ditadura quando esse ciclo se fecha como se fossem necessários ao País. Não importa os crimes que essas ações escondem.
O que de mais grave ocorreu durante a vigência da ditadura militar foi o que esta praticou contra os povos da Amazônia. Os territórios desses povos foram tratados como ‘vazios demográficos’, distribuídos e titulados a grileiros paulistas ou estrangeiros, frequentemente, empresários interessados em fraudar o erário público por meio de um instrumento criado pela ditadura: os incentivos fiscais. As aldeias, as comunidades e os seringais foram simplesmente transferidos a sulistas e os seringueiros empurrados para as periferias das cidades, principalmente para a periferia da Zona Franca de Manaus, sem direito à indenização alguma. Aldeias e povos indígenas foram agredidos e mortos, por vezes, até a sua extinção.
Terras viraram mercadoria para grileiros
Temos uma triste e cruel herança deixada para os amazônidas pela Ditadura Militar. As pessoas nascidas e criadas na região ou arraigadas nela perderam o seu território imemorial com toda a economia indígena preservada ou acumulada ao longo de milênios. Perderam a cultura e perderam a sua autodeterminação.
O que ficou? Entre outras experiências amargas ficou o modelo, implantado pelos militares e adotado pelas elites governantes até os dias atuais: A Zona Franca de Manaus (ZFM) que criou as condições para o êxito do processo de desapropriação das terras interioranas, que viraram mercadoria de grileiros nacionais e estrangeiros; as rodovias incompletas que devastaram as terras indígenas dilapidando o seu patrimônio; as hidrelétricas. Hidrelétricas grandes, médias e pequenas, com resultados pífios como é o histórico de Balbina (obra iniciada em 1981); os projetos de exploração dos minerais; e a própria construção das grandes concentrações urbanas para completar esse ciclo depredador.
Essa ação combinada fez com que na Amazônia florestas, solo e subsolo fossem transformados em mercadoria para as elites governantes e para os seus asseclas. Nem os rios foram poupados. Para construir Manaus os governantes não se importaram que os rios amazônicos fossem arrasados até o fundo dos seus leitos pela exploração do seixo. Só pararam quando já quase todos os rios da região estavam sem condições de abrigar o seu manancial de peixes.
Essa antieconomia, construída sobre a milenar economia indígena, continua seguindo pelo incentivo ao agronegócio, à mineração, a exploração ilegal de madeira, à construção de hidrelétricas com todo o apoio dos governantes federais, estaduais e municipais. Essa antieconomia está mantida, arruína a biodiversidade que vigorava na região e se constituía em uma das suas riquezas.
Não falo de crimes que não foram denunciados. Todos esses aqui citados foram amplamente denunciados desde a década em que aconteceu o golpe militar. Cito aqui alguns documentos que trataram dessas questões: ‘Uma Igreja em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social’, documento da Prelazia de São Felix do Araguaia, datado de 1968; O número especial da Revista CEAS, do Centro de Estudos e Ação Social, da Bahia, de 1973; ‘I Yuca-Pirama: O índio aquele que deve morrer’, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de dezembro de 1973. E cito ainda as denúncias e as remessas de documentos quase mensais feitas pelo Cimi a partir de 1973.
Discutir esses projetos que foram colocados como sendo a redenção da Amazônia é uma necessidade urgente para que o massacre na região não continue, para que possamos inaugurar um tempo novo a partir das experiências dos povos amazônicos. Precisamos fazer essa memória, nos situar na história e continuar a lutar.
As universidades têm muito a fazer nesse campo para cumprir com a outra parte de suas responsabilidades institucionais como formadoras de pessoas e produtoras de conhecimentos. Devem ser sensíveis à partilha dos saberes e do conhecimento. Fazer isso é também buscar o caminho do fortalecimento das lutas dos povos no campo e na cidade, é investir na solidariedade entre os povos, entre os trabalhadores, é como o sal temperando os passos que precisamos dar hoje para diante das marcas de opressão deixadas na Amazônia possamos resistir aos projetos autoritários até que eles sejam extirpados e os povos da Amazônia celebrem a vida e a alegria a que têm direito e que lhes foram usurpadas.
Os índios são desaparecidos políticos
Para Egydio Schwade, os Waimiri-Atroari são desaparecidos políticos tanto quanto são os desaparecidos no Araguaia. Com base em vários documentos, e em todas as oportunidades que tem de se expressar, Egydio afirma que 2 mil índios, da etnia Waimiri-Atroari foram mortos e ou despareceram no período compreendido entre os anos de 1968 e 1983.
A luta agora é para que em nível nacional haja reconhecimento desse fato, pela Comissão Nacional da Verdade, pela Justiça brasileira. Essa é uma das reivindicações feitas no manifesto “Ditadura Nunca Mais: 50 anos do golpe militar”, aprovado no dia 28 de março, durante o seminário “A Amazônia e o Golpe Militar – 50 anos depois”, realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) e o Comitê Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, com apoio da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
O manifesto pede: a responsabilização dos mandantes e executores dos crimes cometidos pelos militares e agentes públicos do Estado brasileiro contra os indígenas; Imediato cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Araguaia” e reinterpretação da Lei da Anistia; Localização e identificação dos corpos dos desaparecidos políticos e esclarecimentos das circunstâncias e dos responsáveis pelas mortes; identificação e punição dos torturadores, estupradores, assassinos, mandantes, financiadores e ocultadores de cadáveres; desmilitarização das polícias e rompimento do ciclo de violência perpetuado pelas corporações.
Educador
No período de 1985 a 1987, Egydio Schwade e a mulher, Doroti, trabalharam com os Waimiri-Atroari em um projeto de alfabetização. A experiência vivida com aquele povo ajudaram o missionário a confeccionar uma espécie de diário de campo com anotações que o ajudaram a compreender o massacre ocorrido contra os Waimiris. Egydio lembra que muitos índios foram mortos ao tentarem resistir aos projetos implantados a partir daquela época e, para matá-los, foram usados recursos como armas de fogo, napalm e eletrocutação.
Destaque
Nos anos de 1980, Egydio Schwade, Doroti e parceiros criam o Movimento de Apoio à Resistência Waimiri e Atroari (Marewa) e com ele nascia uma importante rede de solidariedade a esse povo que praticamente desapareceu em função dos permanentes ataques.
Memória
“O governador do Amazonas, Danilo de Matos Areosa, pedia providências para garantir “a construção da estrada através do território indígena, a qualquer custo”, considerando o índio um inútil, que precisava “ser transformado em ser humano útil à Pátria”. E prosseguia: “os silvícolas ocupam as áreas mais ricas de nosso Estado, impedindo a sua exploração, com prejuízos incalculáveis para a receita nacional, impossibilitando a captação de maiores recursos para a prestação de serviços públicos”. (Fonte: Jornal A Critica, de Manaus, edição de 27 de novembro de 1968).
O governador de Roraima, Fernando Ramos Pereira, completou: “Sou de opinião que uma área rica como essa não pode se dar ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o seu desenvolvimento”. (Fonte: Documento Resistência Waimiri-Atroari / Marewa / Itacoatiaria / 1983, p. 6).
Ivânia Vieira.
Ivânia Vieira.
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