A AUTONOMIA DOS POVOS ASSUSTA: E vivam as “causas perdidas”! - Egydio Schwade
Na minha infância e juventude rezei milhares de terços pela “conversão da Rússia comunista”. Até hoje não me consta que alguma religião cristã tivesse pedido orações pela “conversão dos Estados Unidos capitalista!”
Uma ONU manipulada pelas 5 potências mais armadas, jamais trará paz ao mundo. Com certeza, se a ONU escolhesse a nação mais pobre, mais frágil de cada um dos 5 continentes, para compor o seu Conselho de Segurança, teríamos mais chance de paz e segurança. Os Estados, quanto mais potentes, tanto mais medrosos, covardes e agressivos são. Estruturam-se sobre equivocados princípios, como: “Si vis pacem, para bellum!”(Se queres a paz, prepara a guerra) ou “a paz é uma concessão dos poderosos!” Tudo para justificar o “direito” de matar, subjugar e espoliar.
Aprendi do meu professor de História, no Colegial que sempre devemos procurar as causas, os interesses que se escondem por detrás dos fatos históricos e tirar lições de suas consequências. No caso da guerra da Ucrânia, há muitas cabeças criminosas por detrás, não apenas a do Putin e do Zelenski. E nem só cabeças de governos de Países poderosos, mas também donos de empresas construtoras de armas mortíferas que torcem para que a guerra prossiga e possam testar a eficiência de suas invenções cruéis e enriquecerem à custa da desgraça alheia.
A guerra Ucrânia-Rússia, não “...é somente uma guerra do Putin e da Rússia contra um país que não quer perder sua soberania e liberdade”, como se afirma por aí. Estamos diante de uma situação parecida com a que ocorreu em 1964, quando a URSS-União Soviética, tentou instalar uma base militar em Cuba, nas barbas dos Estados Unidos. Na ocasião, a URSS cedeu à pressão dos Estados Unidos que se viu ameaçada. Agora a poderosa e bélica nação americana e a União Europeia se aproveitaram do desmantelamento da URSS, para cercar a Rússia, ocupando seus vizinhos com a OTAN. Por que a Rússia não se deveria sentir ameaçada? Dois pesos e duas medidas?
E é evidente que esta guerra é também uma guerra econômica que visa enfraquecer ou bagunçar a economia da União Europeia-UE. E isto interessa aos articuladores do Brexit que se escondem não apenas atrás da Inglaterra do Boris. Acho que a neutralidade teria sido a atitude mais sábia da UE, nesta guerra.
Olhando para atrás, vejo fatos que merecem ser recordados. Por volta de 1988, Gorbatchov, último Presidente da URSS, andava livre pelas ruas de Nova York, ovacionado pelo povo. Nem o Presidente dos Estados Unidos tinha tal audácia e tranquilidade em seu próprio país. O povo respirava um ar esperançoso.
Um ano após, em junho de 1989, participei, atento, de uma reunião de professores da DDR e Alemanha Ocidental, na casa de um amigo em Hamburgo/Alemanha. Ao final, intervim, brincando: “Um dia a Alemanha, voltará a se unir”. Todos deram uma gostosa gargalhada. Ninguém cogitava isto e nem se falava em ‘colapso’ da URSS. Menos de meio ano depois, a Alemanha estava unida. Os países capitalistas apressaram-se em atribuir a mudança ao ‘colapso’ da URSS. E as esquerdas falavam em ‘desastre do socialismo’, acusando Gorbatchov de traidor.
Mas, observando bem os “sinais dos tempos”, talvez Alguém Escondido, estivesse atendendo as reais intenções das rezas dos pobres e humildes, ocultas aos ricos e poderosos e até aos dirigentes do Estado do Vaticano que pediam a reza. Sentia-se no ar o aroma de um socialismo de paz, aquele que sustenta e está sempre presente e vivo nas populações pobres e humildes.
E havia na Europa quem percebesse e discutia o assunto. Em 1991, atendi a um convite da Igreja Evangélica de Confissão Luterana da Alemanha, para contribuir num Seminário sobre “Grande Carajás” que se realizou na cidade de Duisburg. No final do Seminário, à espera do voo que me levaria de volta ao Brasil, aproveitei o tempo, para assistir a algumas sessões de outro seminário que ali se realizava, com um jornalista russo, assessor do Presidente da ex-União Soviética, Mikhail Gorbatchov. Tema: Razões que levaram o líder soviético a desmantelar a URSS. O jornalista defendia a posição de que se deveria conceder autonomia, não apenas aos países, mas estendê-la às etnias ou povos. Algo que escandalizou a plateia. E alguém perguntou: “E a Rússia daria autonomia à Königsberg?” (Trata-se de um enclave alemão dentro da Rússia) “Claro que sim, é um povo com sua vida e história própria!” Foi a resposta do jornalista russo. Ideal, sonho ou utopia, o certo é que o desmantelamento da União Soviética, nas condições em que foi efetivada, poderia ter sido o início para a discussão de um novo modo de modelo de organização da vida no Planeta...
A elite ocidental fala em “colapso” da URSS, com o duplo interesse: humilhar a Rússia e justificar o cerco da OTAN. Normal, é de sua essência. Entretanto, acho motivo de reflexão o fato de os socialistas, não terem enxergado algo mais, um socialismo novo, proposto pelo dirigente soviético! Mais preocupante é o fato de ainda hoje o Primeiro Ministro social democrata da Alemanha, apoiar a OTAN que não tolera o social. Lhe interessa impor o capitalismo pelas armas!
Afinal que futuro traz a insistência de ampliar o poder militar da OTAN, os boicotes econômicos e a submissão ao poder do mais forte, aos governos da força, do ódio?
Os governos dos Estados Unidos-Reino Unido-Israel-Rússia são hoje igualmente cruéis e não são democráticos na sua política externa. Perseguem e condenam, sem razão justa alguma. Que justiça há atrás dos 60 anos de boicote econômico a Cuba? Cadê a justiça da ocupação do território palestino? Quem afinal é dono legítimo do território de Israel? Aqueles que desapropriaram o povo palestino, com base num ‘direito’ que remonta a 2000 anos, não deveriam exigir a devolução do território americano aos povos originários, invadido há 500 ou há apenas 50 anos, como é o caso aqui do território Waimiri-Atroari, onde resido?
O que os europeus sentem frente à Rússia, os países latino-americanos sentem frente aos Estados Unidos. E os palestinos sofrem diariamente de Israel, apoiada por EUA. Nem um país do mundo fez tantas intervenções armadas, para destituir governos e sustentar o “direito” de mantê-los sob o seu jugo, para espoliá-los, como os EUA. Qual é a finalidade da “Escola das Américas”, senão preparar e treinar ditadores, com a função de manter o domínio norte-americano sobre os países latino-americanos?
Fala-se ainda que “o Putin é um criminoso que manda matar e assassinar todos os seus inimigos políticos”. Perseguir e eliminar os oponentes é praxe dos chefes de estados poderosos, ‘democráticos’ ou não. Não se noticiou ainda há poucos dias: “Inglaterra vai extraditar Assange para os Estados Unidos?” O que fez o Assange senão denunciar crimes de guerra? Crimes cometidos até contra autoridades legitimamente eleitas, como Angela Merkel, da Alemanha, e Dilma Rousseff, do Brasil? Até pessoas que já haviam prestado serviços aos objetivos necrófilos dos seus governos, como Noriega, Bin Laden e Saddam Hussein, acabaram perseguidos até a morte.
Os crimes de guerra cometidos pelos governos dos Estados poderosos, permanecem impunes. Veja: Vietnã, Congo, Granada, Iraque, Libia, as intervenções nos países latino-americanos, a chacina de Grosny, de Dresden, de Hiroshima e Nagasaki, a guerra da Coréia, do Vietnã, a chacina contra as indefesas mulheres e crianças de Mỹ Lai e as intervenções militares da falada “Primavera Árabe” na Tunísia, Líbia, Egito, Síria que causou morte, miséria e a migração de milhares, buscando abrigo e comida...Todos crimes impunes!
Esperava-se que as igrejas, prosseguissem a discussão que existia em 1991, a que me referi acima. Talvez, raiasse no horizonte do tenebroso passado bélico, o sol de um novo mundo. Na Europa a retomada das suas origens, uma Europa unida, viva, cultivando a riqueza de seus povos. A criatividade e a originalidade de suas línguas, tradições, criação de técnicas do Bem Viver. Colaborando para uma ordem mundial, baseada no reino da solidariedade entre os povos. Fazendo surgir uma humanidade livre, a caminho da sonhada igualdade e fraternidade. Aquela Europa solidária, viva em meio aos desastres bélicos.
Nas 8 vezes que fui convidado para atividades na Europa, fiz questão de passar alguns dias numa pequena, mas inspiradora cidade do interior da Alemanha. Na região existiu um campo de concentração nazista. Uma das minhas visitas, após a queda do Muro de Berlim, coincidiu com a presença na cidade, de uma família polonesa. O pai, ex-prisioneiro dos nazistas, veio agradecer e mostrar para à sua família a gente que o acolheu e ocultou até o fim da guerra, ao fugir do campo de concentração.
E com certeza, o acolhimento de mais de um milhão de refugiados do Oriente Médio e do Norte da África, pelo governo da Primeira Ministra Angela Merkel, contribuiu mais para a paz e segurança na Europa, do que as Cruzadas e as guerras mais recentes de europeus e norte-americanos contra os países vizinhos do Oriente Médio, Europa Oriental e Norte da África.
No meu tempo de estudante, anos 60, vibramos com a vitória de Fidel Castro em Cuba, enfrentando o poderio americano. E a gente via como única saída para a libertação da América Latina, a luta armada. Em 1970, em Viena, a austríaca Hildegard Goss-Mayr me questionou, argumentando em defesa da resistência não armada.
E seguindo a História, vimos o governo cubano mudar a sua estratégia. Ao invés de investir em armas, organizou um ‘exército’ de mulheres e homens de uniforme branco, treinados para praticarem a solidariedade, combatendo doenças, endemias e epidemias, os problemas que mais afligiam as populações pobres e cuja erradicação nunca foi preocupação das grandes potências. E lá está a Ilha presente, mundo afora no combate ao Ebola, à malária, ao Covid-19... Até a União Europeia já sentiu o carinho de 50 médicos cubanos, treinados no combate à epidemia mais recente. E ofereceu até médicos ao vizinho ameaçador, para socorrer o povo de Nova Orleans, atingido por ciclone? (Oferta não aceita pelo orgulhoso governo vizinho)
Conheci e fui atendido em minha vida por vários médicos brasileiros com um carinho e competência cuja lembrança me emociona até hoje: Gil e Albinear, lá no interior do Goiás, Marcus Barros, aqui no Amazonas e outros. Frutos de uma convicção que com certeza cultivaram, desde jovens, na “Sarça Ardente” do seu interior. Não como fruto incentivado por um processo educacional de Estado.
Recentemente, na cidade onde moro, aqui no interior da Amazônia, ouvia o povo torcer para que quando fosse ao Posto de Saúde do SUS, estivesse de plantão a “médica cubana”. Nunca vi esta tal médica, mas outro dia fui a uma consulta naquele Posto e casualmente, foi a médica cubana que me atendeu. Faz algum tempo que sofri uma cirurgia de colostomia. Em consequência, uso bolsa. Após o atendimento, quando me levantei para sair, encostei com a bolsa na mesa. E ela se abriu, espalhando a merda, pelas pernas, pés e chão. Quando a médica cubana viu minha situação constrangedora, me tranquilizou. Saiu às pressas, fechando a porta. E uns 3 minutos após, voltou com uma bacia de agua e uma toalha no ombro. Com todo o carinho, lavou, os pés, as pernas e o chão. Um “lava pés” profissional completo, não apenas de cerimônia de 5ª-feira santa!
Outra surpresa tive um dia, quando, cedo, fui com Doroti, minha esposa, ao nosso sítio. Ao chegar próximo, saiam dois caras de perto do lago de peixes. A sensação dos donos foi tratar-se de invasores. Mas ambos se dirigiram tranquilamente a nós. De fato, era um cubano, especialista em erradicação da malária, com seu cicerone local. Acabara de colocar algo, como bactérias, para imunizar o laguinho da malária que infestava a área.
Segundo Relatório da UNESCO, “desde 1963 Cuba já enviou mais de 400.000 profissionais, médicos em 164 missões a países da África, América, Oriente Médio e Ásia, além de prestar ajuda humanitária em casos de catástrofes, emergências e epidemias como Ebola”.
Não estaríamos ante um Estado realmente revolucionário, treinando um “Exército” para a prática da solidariedade? Com certeza, este ‘exército’ traz a Cuba mais proteção e segurança, do que o Conselho de Segurança da ONU e as bases militares da URSS de 1964. E imagine se isto se tornasse rotina e os países da União Europeia, abandonassem a OTAN e investissem seus recursos em ações solidárias aos povos da Europa Oriental e do mundo, em programas de saúde, alimentos, energia.., O que os poderosos fariam com seus arsenais de armamentos?
Hoje, aos 86 anos de idade, sinto-me feliz e realizado por ter gasto a minha vida, junto com centenas de companheiros(as) do Brasil e do mundo, na luta pela sobrevivência dos povos indígenas, invadidos, perseguidos e esmagados pelos Estados-“cristãos”, a ponto de terem sido considerados “causa perdida”. Este mutirão de pessoas e entidades, gente solteira e gente com família, gente do Brasil e de muitas partes do planeta que se encarnou na realidade desses povos em seus últimos refúgios e os encorajou e ajudou a retomarem a sua História, desencadeando neles um processo de vida e esperança que culminou não apenas em sua reanimação, união e multiplicação (eram menos 100 mil, nos anos 60, hoje beiram um milhão), mas que aponta hoje à humanidade o rumo para a superação dos seus grandes impasses na economia, na preservação do meio ambiente, descortinando um horizonte farto e feliz para as gerações vindouras.
Aquele que não se deixa limitar pelo universo, mas cabe no menor e que sopra constantemente a “Sarça” em cada pessoa humana viva, foi ele que acionou toda esta gente, nascida lá e cá, a se encarnar junto a ele, esmagado nos confins do Brasil, onde nenhum poder de Estado chega. Ali vai reorganizando o seu povo e guiando-o pelos caminhos que o conduzem ou reconduzem ao seu projeto, enquanto vai semeando, Planeta afora, as sementes para fartar as festas e o Bem Viver do seu povo. Esta é a prática da política externa escondida em todo o ser humano e que precisa de companhia viva, para se encarnar e efetivar na realidade das pessoas e garantir um povo feliz. Todo o líder que não ‘cabe’ nesta gente mínima, cai no perigo de ficar escravo de leis e palácios e praticante da violência e da opressão. E será “despedido de mãos vazias!”
A sabedoria que constrói soluções reais para os problemas da humanidade, se esconde nos povos mais frágeis que insistem em viver um socialismo real, um modelo de vida cheio de esperança. Conscientes disso, resistiram e resistem nos seus frágeis redutos, na força da teimosia, praticando o Bem Viver. E este vai se ampliando na medida em que se garante espaço para a vida, para as pessoas se realizarem vocacionalmente no meio da comunidade e do seu povo.
Lenda ou História, estamos vivendo um momento, semelhante ao descrito pelo sábio que nos deixou o relato de Sodoma e Gomorra: Não percamos o nosso tempo em querer salvar Gomorra ou Sodoma e seus dirigentes, mas juntemo-nos ao ‘restinho’ do Noé, na construção do navio da ‘Sabedoria’ do Bem Viver dos povos.
Em todo o mês de junho o povo celebra a vida de João Batista. Sua maneira de viver e dizer: “É preciso que ele cresça e que eu diminua!” Personagem que por isso se arraigou fundo na vida do povo que o celebra nas festas juninas, onde todos se irmanam na dança e na partilha, ficando compadres e comadres em volta da “sarça ardente”.
A luta solidária e mansa pelo direito de todos os povos à terra, à cultura e à autonomia, ao Bem Viver, vencerá!
Casa da Cultura do Urubuí, dia 5 de junho de 2022, Dia Mundial do Meio Ambiente!
Egydio Schwade
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