Cidadão Amazonense, Quem Diria?

Por Lori Altmann* e Roberto E. Zwetsch**

Nós o conhecemos, Egydio, por causa dos povos indígenas e suas lutas no início dos anos de 1970, quando você e Iasi percorriam as aldeias em todos os cantos do país fazendo aquele famoso Levantamento da População Indígena do Brasil, origem de muitos outros levantamentos e censos que acabaram por atestar que a população indígena começava a crescer e a afirmar-se no contexto maior da sociedade brasileira. Graças a Deus, podemos afirmar hoje, porque você foi um dos responsáveis pela decisão que mudou nossas vidas.

Éramos estudantes de teologia luteranos em São Leopoldo (RS), participávamos de um grupo de teólogas e teólogos que buscavam novos rumos para a inserção nas lutas populares sob a inspiração da Teologia da Libertação que estava chegando para transformar nossa forma de ler a bíblia e fazer teologia na América Latina. Depois de algumas experiências junto a algumas comunidades, Lori junto ao povo indígena Tapirapé (MT) com a comunidade das Irmãzinhas de Jesus (ah, Genoveva, que saudade você deixou!) e entre o povo Kaingang de T.I. Guarita/RS e Roberto e Lori nos encontros de estudo na Terra Indígena dos Kaingang de Guarita (RS), decidimos casar e assumir o compromisso de viver e lutar junto com os povos indígenas. Você e Doroti têm parte nessa decisão que marcou e ainda marca nossa vida por mais de 40 anos, caro amigo!

Eram tempos sombrios aqueles da Ditadura Civil-Militar. Tempos de Médici, você lembra muito bem. O autoritarismo do governo na FUNAI, recém criada em 1967 para substitutir o antigo e corrupto SPI – Serviço de Proteção aos Índios, se fazia sentir com toda a força, mediante as políticas de ocupação da Amazônia, de descaso pelos povos indígenas e de perseguição aos opositores, também das pessoas, intelectuais e militantes que começavam a se organizar para fazer frente à tutela imposta aos povos indígenas e para a luta em defesa de suas terras e direitos históricos.

Lembramos bem do Encontro de Lábrea (AM), em 1979, na Assembleia do CIMI – Amazônia Ocidental, quando Lori e nossa pequena Pama se juntou a Doroti e o pequeno Ajuri num momento de forte tensão nas lutas indígenas da Amazônia. Foi desse encontro e da negativa de participação de lideranças Suruí na Assembleia de Chefes Indígenas que resultou, na época, nossa expulsão da terra dos Suruí, em Rondônia, que ficava dentro do Parque Aripuanã. Não esquecemos jamais a solidariedade que recebemos do CIMI, de você e Doroti, de Dom Tomás Balduíno, de Dom José Gomes, das amigas e amigos da OPAN, então Operação Anchieta, e também de nossos colegas de ministério na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, que atuavam nas comunidades de Rondônia e Mato Grosso. Foi por causa do CIMI e da abertura de Dom Moacyr Grechi, bispo da Prelazia do Acre e Purus que, em meados de 1980, fomos acolhidos pelo povo Kulina do alto Purus e trabalhamos por sete anos com aquele povo num projeto de inserção e testemunho que denominamos pastoral de convivência.

Você foi um de nossos mestres na tentativa de praticar uma nova forma de missão, encarnada na realidade indígena, atenta a seus reclamos, aberta para aprender a língua e o modo de viver desse povo, assumindo um compromisso de luta que desbordava a confessionalidade cristã para se tornar solidariedade humana, ativa e transformadora. Você e seus fieis companheiros como Antônio Iasi, Thomaz Aquino Lisboa, Bartomeu Melià, Elisabeth Amarante, Nello Ruffaldi, Ir. Rebeca Spires, leigos como Eunice Dias de Paula e Luiz Gouveia de Paula, Wilmar D’Angelis e Juracilda Veiga, Alberto Capucci e Jussara Rezende Capucci, as jovens companheiras e companheiros da OPAN e os memoráveis Cursos de Indigenismo em Cuiabá (MT), serviram como embrião de uma nova prática missionária, não mais voltada para dentro da igreja, mas para fora dos parâmetros da instituição, assumindo radicalmente a inserção nas comunidades de muitas partes da Amazônia, lutando por sua vida e dignidade, tornando-se aprendizes culturais e verdadeira vanguarda na busca por um mundo outro, possível, em defesa dos direitos históricos dos povos, de suas culturas, e comprometidos com seu futuro.

De certa forma, as conquistas indígenas na Constituição de 1988 e nos seus artigos 221, 232 e alguns outros são resultado dessa caminhada feita com muitas organizações não-governamentais e comissões de apoio aos povos indígenas.

O estado do Amazonas se tornou para você, sua saudosa companheira Doroti e sua família, lugar de existência e concepção de uma vida alternativa perfeitamente inserida e integrada na ecologia da região (sua experiência com as abelhas amazônicas o atestam, cum lauda!). Sua decisão foi – como sempre – radical e a trajetória de filhos e filhas Ajuri, Adu, Mayá, Maiká e Luiz só vieram depois comprovar o que mãe e pai vivenciaram no dia a dia de buscas, escolhas, projetos, sonhos, realizações.

Se neste dia os representantes do Parlamento do Amazonas decidem homenageá-lo com um título de cidadão amazonense, em nome do povo desse estado, o fato vem para confirmar o que, talvez, no cotidiano de muitas aldeias e cidades esquecidas do vasto interior amazônico é celebrado como sinal de uma vida dedicada à libertação de um povo, de muitos povos que ainda – e por muito tempo – haverão de teimar por serem reconhecidos como gente, como parte da cidadania brasileira, nas suas diferenças e tão importantes contribuições culturais.

Egydio receba de quem o admira o abraço afetuoso.


Pelotas, julho de 2015.

*Pastora e Profa. Dra. Lori Altmann Departamento de Antropologia e Arqueologia/ICH/Universidade Federal de Pelotas/RS

**Prof. Dr. Roberto E. Zwetsch Programa de Pós Graduação em Teologia das Faculdades EST e ambos pastora e pastor da IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil

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