DOROTI ALICE MULLER SCHWADE: Recordação no seu terceiro ano de falecimento





Queridas Amigas e Queridos Amigos,

Hoje se completam três anos do falecimento de Doroti. Este é um encontro de memória e de lembranças para todos que tivemos o privilégio de conhecê-la, de sentir seu carinho, de compartilhar sonhos, lutas e esperanças.

É também oportunidade para que outros conheçam um pouco de sua história e de seu exemplo de vida, dedicação e compromisso com a construção de um mundo mais fraterno.

Doroti nasceu na cidade de Blumenau/SC, no dia 8 de maio de 1948. Já aos 13 anos começou a trabalhar no comércio da cidade para ajudar nas finanças da família. Aos 15 assinou a sua primeira carteira de trabalho. Fez o seu primário e científico em escola pública, ingressando em seguida na faculdade de Pedagogia.

Desde pequena propôs-se dedicar a vida aos mais necessitados, pensando ir como missionária leiga para a África. Participou do movimento jovem da Igreja Católica onde foi escolhida em 1973 para integrar um grupo de jovens que representou a juventude catarinense em um encontro latino-americano no Paraguai.

Na viagem de volta conheceu Pe. Renato, um jesuíta que a convidou para integrar a Operação Anchieta – OPAN, hoje Operação Amazônia Nativa, sediada em Cuiabá. A OPAN forma jovens missionários leigos para trabalharem com os índios do Brasil e, em especial, da Amazônia. Vendo seu sonho diante dos olhos não pensou duas vezes. Comunicou-se com a coordenação da instituição e no ano seguinte já participava do curso de preparação em Caxias do Sul. Dali seguiu para a periferia de Porto Alegre onde fez estágio servindo aos mais necessitados.

No inicio de 1975 o Pe. Gunter, da Prelazia de Diamantino/MT, a apresentou à comunidade de Novo Horizonte, hoje município de Novo Horizonte do Norte/Mato Grosso, onde lecionou um ano na escola pública local.

No ano seguinte a OPAN a destinou ao Acre, para uma ação conjunta com o recém-criado regional do CIMI – Conselho Indigenista Missionário/ Amazônia Ocidental que incluía o Acre, o Médio Purus e o Médio Rio Madeira. Doroti foi eleita primeira coordenadora daquele regional. Na época nenhuma das Prelazias desta região, ou seja, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Lábrea e Humaitá, possuía pastoral indígena organizada. Por isso, Doroti internou-se pelos rios da região, único acesso às comunidades indígenas e rurais, na busca de localizar povos e comunidades indígenas refugiados nas cabeceiras de rios e igarapés. Percorreu primeiro os rios Abunã, Iaco, o Alto Purus e o Envira, depois percorreu todo o Médio e Baixo Rio Purus e seus afluentes. Percorreu ainda o médio rio Madeira e seus afluentes. Ao final, estabeleceu-se na Prelazia de Lábrea/Amazonas, onde iniciou a Pastoral Indígena.

Quando alguma Prelazia ou paróquia não lhe dava apoio logístico, Doroti ia sozinha em embarcações de pescadores ou de pequenos comerciantes, os “marreteiros” como são conhecidos na Amazônia. Assim foi localizando dezenas de comunidades indígenas até então desconhecidas pela Igreja e pela FUNAI, comunidades em grandes dificuldades por causa da exploração exercida por patrões de seringal, pelos conflitos com seringueiros e por doenças trazidas pelos invasores de seus territórios. Trouxe as primeiras notícias de povos isolados, como o dos Suruaha, localizado em um afluente do Rio Tapauá, cujos primeiros contatos foram depois feitos por membros do CIMI e da OPAN.

Em1978 nos casamos. Naquele momento eu era então Secretário Executivo do CIMI Nacional, cujo trabalho continuamos até 1980.

Naquele ano viemos, a convite de Dom Jorge Marskell, bispo da Prelazia de Itacoatiara/AM, assumir a Pastoral Indígena desta Prelazia, em especial para iniciar um trabalho junto ao povo Waimiri-Atroari. A tarefa foi muito difícil por conta do bloqueio, da perseguição e da difamação perpetrada por agentes da Ditadura Militar e de gananciosos que promoviam o extermínio daquele povo para se apossar e expropriar o território. Doroti e eu nos localizamos primeiro na sede da Prelazia, em Itacoatiara, inserindo-nos na Pastoral, fazendo levantamentos no entorno da área Waimiri-Atroari e fazendo contatos com algumas aldeias, mesmo estando proibidos pelos Ditadores. Para permanecer mais próximos da área indígena estabelecemo-nos, no inicio de 1984, no recém-criado município de Presidente Figueiredo.

Com o fim da Ditadura Militar fomos convidados pelos índios e autorizados pela FUNAI a participar da vida em suas aldeias, iniciando o primeiro trabalho de alfabetização em sua língua materna. Pela primeira vez o povo Waimiri-Atroari ou Kiña, como se autodenominam, começou a revelar o que lhe aconteceu durante a Ditadura Militar.

Em 1986, depois de teremos sido impedidos de continuar o processo de alfabetização dos Kiña pelo então presidente da FUNAI, hoje senador Romero Jucá, que sempre esteve contra os interesses dos povos indígenas, estabelecemo-nos em Presidente Figueiredo, onde assessoramos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e participamos dos mais diversos movimentos sociais. Doroti atuando decisivamente na luta pelos direitos humanos, combatendo principalmente as violências contra crianças e adolescentes. Neste sentido colaborou na criação do conselho tutelar no município e, a nível nacional, participou dos debates para a criação do Sistema Único de Saúde – SUS.

Continuamos a luta contra os principais inimigos dos Waimiri-Atroari, os grandes projetos de mineração e hidrelétricos, mas que, afinal, apesar do nosso empenho e o de muitos outros companheiros, foram instalados pelos governos que se seguiram, dando continuidade às ações da ditadura militar.

Em1992 decidimos mudar a nossa estratégia de luta. Ao invés de combater grandes projetos irreversíveis para todo o Estado, resolvemos contrapor o nosso pequeno projeto: uma agricultura na sua biodiversidade amazônica. E neste novo contexto Doroti, embora de origem urbana, tornou-se a principal responsável pelo investimento na terra.

Doroti nunca deixou de apoiar as lutas dos povos indígenas e oprimidos.

Em nossa caminhada nos acompanharam, nas alegrias e nos sofrimentos, cinco queridos filhos: Marcos Ajuri, Maurício Adu, Mayá Regina, Tiago Maiká e Luiz Augusto. Desde pequenos eles integraram esta caminhada em prol de uma humanidade que busca respeitar a vida em toda a sua plenitude.

A memória de Doroti é, pois, alimento e inspiração da busca por uma sociedade mais justa, fraterna e respeitosa para com a dignidade das pessoas, das comunidades, dos povos e de toda a vida na mãe-terra.

É com muita saudade e com muitas lembranças que nos reunimos hoje aqui para celebrar em sua memória!


Egydio Schwade

Comentários

  1. Oi seu Egydio! Mayá comentou comigo ontem que estava indo pra PF para participar da missa de 3 anos. Confio que Deus esteja iluminando os coraçoes de cada um de voces e que essa saudade, imagino constante, esteja acompanhada de boas recordaçoes e razoes, trazendo força pra seguir nessa missao e caminhada. Um abraço bem apertado! Meire

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  2. Abraço fraterno meu conterrâneo de infância...

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